Cultura
Invasões bárbaras
O bolsonarismo é advento do espírito antimoderno, espelho de uma ojeriza secular ao contemporâneo


A violação dos edifícios dos Três Poderes no domingo 8 foi, além de uma tentativa de golpe, um ato de terrorismo simbólico duplo. Vimos, de um lado, a negação imagética da posse de Lula. De outro, a mais perfeita tradução da repulsa bolsonarista ao projeto brasileiro de modernidade cultural e política.
Para a compreensão maior do desastre é preciso olhar, primeiro, para o que houve na semana anterior ao quebra-quebra. Depois, para o velho desprezo da direita brasileira pelas criações dos nossos muitos modernismos e pelo sistema institucional que mantém sua chama acesa. Na virada do ano, as esquerdas e os movimentos sociais progressistas ocuparam a capital federal com suas bandeiras e festejos, suas cores e valores, afinados na defesa da institucionalidade democrática. Viu-se ali um catártico sentimento de refundação e desforra que, exagerado ou não, dominou os trend topics da web por dias a fio.
Na perspectiva da “batalha narrativa”, Brasília, entre 31 de dezembro e 1º de janeiro, foi uma fábrica de símbolos. Nas posses coloridas de Silvio Almeida, Marina Silva e Margareth Menezes, entre outras, irmanaram-se e celebraram-se lideranças populares multiétnicas, ativistas e heroicos funcionários públicos. A força dessas manifestações tomou a imprensa global.
Quando a festa acabou, com tal carnaval ecoando, o que restava ao bolsonarismo loser, porém persistente, vivendo o seu pior momento? Restava o bordão do Bandido da Luz Vermelha, imortalizado no cinema: “Quando a gente não pode, a gente avacalha”. Restava juntar o princípio desgraçado da avacalhação brazuca à cartilha sinistra de Steve Bannon, ex-estrategista de Donald Trump. Restava um melancólico, embora gravíssimo, revide simbólico. Para anular os feitos adversários, só mesmo uma ação igualmente forte. Avesso. Antítese. Uma contraposse, a tal “reintegração de posse”, da qual falou um dos participantes do assalto.
“Quando a gente não pode, a gente avacalha”, ensinava o Bandido da Luz Vermelha
A ordem dada à turba foi clara: entrem lá e quebrem tudo, rasguem, furem, cortem e defequem onde for possível. Acima de tudo, filmem-se e façam circular as imagens. O material autoincriminatório dos invasores é suicida, mas parte do plano. Eles estavam lá exatamente para produzi-lo e, com isso, anular a sensação de que a República brasileira estava se livrando de seu neofascismo.
Aí está o segundo aspecto essencial. A capital do Brasil é uma cidade modernista, e quem a vandaliza está, necessariamente, atentando contra obras ligadas a essa tradição. Para um bolsonarista ensandecido, não há nada a lamentar nessa “coincidência”. Ao contrário. Melar simbolicamente a posse de Lula e moer artefatos exemplares da nossa cultura moderna é atingir dois alvos com o mesmo tiro. O desprezo direitista por essa cultura nunca se fez esconder. Ele foi perfeitamente sintetizado por Mário de Andrade, quando o poeta recapitulou, em ensaio magistral, a atmosfera cultural de São Paulo por volta de 1922.
No texto sarcástico, aparece o episódio arquetípico do que estamos assistindo novamente. O escritor endivida-se para comprar a Cabeça de Cristo, moldada por Victor Brecheret. Excitado com a compra, desembrulha a peça em casa, para assombro de sua família. O conservadorismo estético e político fala grosso: “A parentada que morava pegado invadiu a casa para ver. E para brigar. Berravam, berravam. Aquilo era até pecado mortal!, estrilava a senhora minha tia velha, matriarca da família. Onde se viu Cristo de trancinha! Era feio! Medonho!” A “senhora tia velha” de Mário de Andrade é uma Damares. Ela não aceitava o novo, mesmo sendo aquele novo uma operação da própria elite branca, de origem europeia.
O desprezo bolsonarista, em linha com a velha direita, é também inequívoco. Há tempos ele se expressa em falas e ações concretas de abandono e leniência. De 2013 a 2022, as principais vítimas dessa leniência foram o Memorial da América Latina, o Museu da Língua Portuguesa, a Cinemateca Brasileira, o Museu Nacional, os arquivos de arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro e o Arquivo Nacional.
Relicário. Esqueçamos a restauração. O relógio sem ponteiros é a síntese do Brasil – Imagem: Redes sociais
Essas instituições e acervos são diversos em seus objetivos e significados, mas têm algo em comum: integram um sistema organizado para produzir o entendimento histórico e antropológico de nós mesmos. Esse programa mental é moderno. Olavo de Carvalho sabia disso.
A ideia de patrimônio, no Brasil, aliás, é um paradoxal estabelecimento desse mesmo programa. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico foi criado por poetas e intelectuais ligados ao movimento modernista, sob os auspícios de Gustavo Capanema, ministro de Getúlio Vargas. O sentido de patrimônio, no Brasil, nasce pelo engenho de uma vanguarda e escolhe inicialmente preservar os fatos de cultura, inclusive a popular, que atendiam à sua narrativa de desenvolvimento.
Não por acaso, em meados de 2021, a tropa de Jair Bolsonaro tentou livrar-se do Palácio Capanema, símbolo dessa construção e icônico edifício da moderna arquitetura brasileira. No grupo que o concebeu estavam arquitetos como Lucio Costa e Oscar Niemeyer. O prédio foi erguido entre 1937 e 1945 para abrigar o então recém-criado Ministério da Educação e da Saúde.
Faz sentido o ranço. O bolsonarismo é um advento do espírito antimoderno, a espelhar uma ojeriza que sempre existiu. A velha direita detestava Brasília. Ouvimos, muitas vezes, que o governo Bolsonaro foi descuidado do patrimônio nacional em geral. Essa visão é equivocada. Foi um governo que, tendo se originado e alimentado dessa antiga repulsa, empenhou-se no apagamento da moderna cultura política brasileira. Essa, a despeito de suas insuficiências, deslizes e promessas não cumpridas, é uma obra aberta de homens e mulheres indubitavelmente progressistas, originando, inclusive, o contemporâneo – outro alvo, logicamente, da repulsa “bozi”.
É ruim subestimar a armação consciente de uma tal destruição. No ano passado, em meio à turbulenta campanha eleitoral, esse desprezo foi escancaradamente plasmado pela série de filmes bolsonaristas O Fim da Beleza. O projeto é da produtora Brasil Paralelo.
O enfrentamento do bolsonarismo exige a retomada do projeto de modernidade e modernização do País
Para os versados em arte, o proselitismo da série soa apenas como bololô de clichês e preconceitos rasteiros contra a produção moderna e contemporânea, o cubismo, a abstração, o minimalismo, a dissonância, a performance, em resumo, o abandono da representação figurativa e o não investimento nos cânones do “belo natural”. Abundam no filme depoimentos de “autoridades” desfilando sua contrariedade. Abundam paisagens, poentes e mil cafonices restaurativas que o obscurantismo costuma convocar como antídoto a uma suposta “degeneração do gosto”. Abundam, sobretudo, as semelhanças entre essa mentalidade e o horror nazista ao expressionismo, bem retratadas no clássico Arquitetura da Destruição.
Embora falsificador, O Fim da Beleza revela o nível de premeditação com o qual o bolsonarismo procura aniquilar o que lhe é diverso e incômodo. Por trás da multidão verde-amarela opera uma cúpula de inimigos das nossas melhores aspirações. O projeto brasileiro de modernidade não foi plenamente inclusivo. Sofre hoje críticas decoloniais justíssimas. Ele foi, entretanto, um divisor de águas, abrindo caminhos inegáveis para o exercício da liberdade. Esse foi o seu fascinante otimismo.
O enfrentamento do bolsonarismo exige a retomada dessa experiência e a sua reelaboração continuada como material para um novo período, mas é brutal a ignorância dos jovens a esse respeito. Se não recuperarmos a relação entre cultura, arte, história do País e ensino, essa superação dificilmente acontecerá. A esquerda estética deve retomar o problema formativo da educação e da escola.
O que a imagem alegórica da passagem da faixa presidencial nos mostra é que essa modernidade pode ser reativada, com compromissos sociais mais amplos, apesar das inúmeras contradições inerentes a ela mesma e ao presente. Se o governo de Lula III fará jus a essa alegoria, quem dirá é o tempo. Os bolsonaristas, de todo modo, agrediram não apenas o passado de uma tradição, mas as indicações de sua possível reconfiguração no tempo. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1243 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE JANEIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Invasões bárbaras “
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