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Inquietante mundo novo

O fantasma distópico que invadiu a modernidade

Inquietante mundo novo
Inquietante mundo novo
Megalópolis, de Coppola, revisita a pólis grega. More imaginou a ilha perfeita – Imagem: Redes sociais
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Segundo a definição do dicionário da Academia Francesa de 1798, escrito quase uma década depois do desencadear da revolução que derrubou Luís XVI, a utopia é o “plano de governo imaginário em que tudo é perfeitamente regulado para a felicidade comum”. Na verdade, é muito mais: é uma narrativa que apela a uma comunidade imaginada, mas que também convida a viver desde logo segundo regras em contraposição com múltiplas formas de opressão e que, pelo seu enunciado e experiência, constituem um impulso para mudanças radicais na sociedade.

Essa esperança utópica constituiu um dos fundamentos das aspirações democráticas e inspirou possantes programas políticos progressistas (Thomas More), ao mesmo tempo que albergou ambições autoritárias (Tommaso Campanella). Essa herança utópica é grandiosa. Promoveu a resistência contra a desigualdade e, ao chegar ao tempo da Revolução Industrial, foi uma base de contestação dos “moinhos satânicos”, como então foram designadas, seguindo um verso do poeta britânico William Blake, as fábricas que espoliavam o trabalho e desse modo trituravam os corpos de crianças, homens e mulheres. Protestando contra o velho mundo e contra a nova plutocracia, as utopias multiplicaram a imaginação sobre uma vida feliz. Assim, ainda antes das revoluções modernas, essas utopias foram muitas vezes o primeiro ímpeto da modernidade. O que em seguida discuto é como essa energia utópica reduziu-se com o predomínio da distopia nos nossos dias.

As utopias foram o fruto da imaginação de personalidades raras

Utopia

As utopias foram o fruto da imaginação de personalidades raras. Uns foram figuras políticas, outros modestos escritores, alguns eram clérigos desavindos e todos conviveram com a dilaceração forçada pelos alvores do capitalismo desde o século XVI. Dois deles ocuparam as funções de chanceleres da Inglaterra, outro foi temido a ponto de ser preso durante 27 anos e alguns andaram foragidos no anonimato.

Escreveram nessas sociedades espartilhadas e foram motivados por contradições sociais que os impressionavam: ­More, advogado dos comerciantes e exportadores ingleses, aliados naturais dos senhores da terra, protestou em nome dos camponeses pobres que estavam a ser expropriados para a extensão de pastagens para a produção de lã. Em contrapartida, ­Campanella defendeu o absolutismo imperial no tempo em que irrompiam as manufaturas e a exigência de liberdade. E Saint ­Simon promoveu o industrialismo enquanto os operários começavam a se organizar.

Foram hereges à sua maneira More e Rabelais. Campanella e Bacon, Owen e Fourier, Cabet e Flora Tristan, entre muitos mais, foram vozes de políticas antimaquiavélicas: mesmo quando alguns se situaram do lado do autoritarismo e quando atribuíam aos príncipes ou sacerdotes o controle total da sociedade imaginada, alguma forma de gratificação utópica perturbava esse conformismo, fosse no elogio da tentação sexual, na tolerância religiosa, na aventura por terras desconhecidas onde a liberdade podia ser inventada, ou na aspiração à redução do horário de trabalho que permitisse viver. Era aí que brilhavam.

Em Admirável Mundo Novo, Huxley profetizou a era de indivíduos submissos – Imagem: BBC

Como gênero literário, as utopias arrastavam a nostalgia da antiguidade, a partir dos seus mitos e viagens, e, ao mesmo tempo, como manifesto político ­atual, erguiam a promessa da distribuição futura dos bens e até do fim da propriedade privada. A inspiração romântica reforçava esse anticapitalismo igualitário, expresso por vários utopistas no desprezo pelo dinheiro. Assim, os dois tempos históricos, o passado e o presente, colidiam e sobrepunham-se naquela imaginação do futuro. Convocavam memórias de felicidade a par do entusiasmo pelo novo e, por isso, distinguiram-se entre as ideias suas contemporâneas: foram imaginários do desejo para além da lei da terra. Mas foram também um não lugar e, portanto, uma não política, ou uma política sem meios, que queria uma comunidade e a situava na fantasia, que queria distribuir e adivinhava uma abundância que tudo permitiria, que explorava a liberdade dos corpos e das mentes e também a condicionava por instituições que criticava ou mesmo denunciava.

Ainda assim, foram uma linguagem da rejeição das agruras do mundo, apesar de pouco se ocuparem do que as poderia tornar viáveis. Exiladas em ilhas longínquas onde só se poderia chegar por roteiros indecifráveis, as utopias dispensavam-se de explicar como se tinham estabelecido – e, portanto, como se poderiam instituir doravante – e davam por adquirido o sucesso que desistiam de indiciar. A distância de uma ilha misteriosa foi a prova de que a utopia não estava segura do que devia ser. Aqui está o paradoxo, as utopias que até o século XIX enunciaram esse programa fugiram dele: o subterfúgio da ilha perdida e, depois, o de um futuro sonhado, foi forma de escapismo. Enfrentavam a ordem que oprime por via do seu próprio desterro do mundo.

Estava inscrito nesta tensão entre o desejar e o fazer que, quando as revoluções e contrarrevoluções invadiram o século XIX, a imaginação social passou a ser uma forma de política e não de utopia, tanto mais que as experiências concretas de comunidades utópicas foram poucas e de reduzida dimensão – e fracassaram sem deixar rastro. Em consequência desse efeito de desvanecimento, a utopia recolheu-se ao campo da maravilha tecnológica, onde a máquina jurava conseguir o que os humanos tinham falhado. E assim triunfou a distopia.

O Mundo Novo será uma bolha tecnológica, não uma prisão com barras, alertava Aldous Huxley

Distopia

O filme Megalópolis, de Francis Ford ­Coppola, é um sinal dessa mutação. Replica a antiguidade (passa-se em Nova Roma, festeja-se a Saturnália, há um Senado) e o futuro é descrito como o presente do passado, mas essa projeção só é possível pela invasão da tecnologia que permite o controle do tempo e a opulência.

No século XIX, alguns utopistas tinham criado comunidades para realizar o seu projeto. Assim foi com Owen, Saint Simon, Fourier e Cabet, e os quatro esgotaram-se nessas tentativas. Algumas delas alimentavam-se de uma paródia ou até de um providencialismo exclamatório, como foi o caso de Fourier, enquanto outras tentaram criar experiências concretas de vida alternativa, como nos casos de Owen e Cabet. Levantaram poucas pessoas e fracassaram em todos os casos, não deixando nada senão frustração. Esse desastre foi acompanhado a distância, primeiro com simpatia, e até com alegria, e depois com crescente desconfiança pelos que procuraram por esse tempo constituir movimentos revolucionários, como Proudhon, Marx e Engels. Na geração seguinte desse movimento, a hostilidade à utopia tornou-se indisfarçável. Lenin escreveu que “não há um grão de utopismo em Marx” e Rosa Luxemburgo afirmou no mesmo sentido que “o socialismo não pode ser realizado nem através da propaganda do mais engenhoso criador de utopia socialista, nem por meio de guerras de camponeses ou de conspirações revolucionárias” – rejeitava de uma penada ­More, Munzer e Blanqui. O que esses protagonistas do século XIX e do início do século XX afirmaram é que a utopia não tinha qualquer efeito na luta de classes.

O renascimento da literatura sobre o futuro surgiu com a substituição da ação humana pelo poder da máquina. Esse é o centro da trama de Zamiatine (Nós, 1922), Huxley (Admirável Mundo Novo, 1932) e Orwell (1984, 1949), se bem que os autores não se entendessem sobre o que pretendiam: por exemplo, Huxley reagiu ao livro de Orwell com uma carta em que lhe sugeria que a imagem da brutalidade da repressão em 1984 não seria o padrão do totalitarismo futuro. A regra será o condicionamento das mentalidades, a formação de modelos de obediência e o uso da ignorância ou da credulidade, argumentou. O Mundo Novo será uma bolha tecnológica, não será uma prisão com barras, explicou Huxley: “Se de fato a política da bota-na-cara pode prolongar-se indefinidamente parece duvidoso. Acredito que a oligarquia reinante achará modos de governar menos agressivos e satisfará a sua ambição de poder, e que esses modos se parecerão aos que descrevi no Admirável Mundo Novo. (…) Na próxima geração, acho que os governantes do mundo descobrirão que o condicionamento infantil e a narco-hipnose são mais eficientes, como instrumentos de governo, do que os bastões e as prisões, e que a ganância pelo poder pode ser tanto completamente satisfeita, sugerindo às pessoas que apreciem a sua servidão, quanto pela chibata que as force à obediência”.

Segundo Orwell, a violência e a opressão continuariam a ser o cerne do totalitarismo – Imagem: BBC

Orwell não podia estar mais em desacordo. A sua experiência de vida ­afastava-o dessa fantasmagoria de Huxley, não só porque vivera a guerra em Londres, cidade bombardeada pelos nazistas, como antes participara na luta contra os fascistas e se opusera à repressão stalinista na tragédia da república espanhola, e, portanto, conhecia a crueldade da política das botas cardadas. Questionado mais tarde sobre esse seu compromisso, Orwell explicaria simplesmente que se tratava de combater o fascismo em nome da decência comum. No entanto, não era só para Leste e para o Sul que olhava, considerava também a sua própria experiência inglesa. Tinha trabalhado na BBC entre 1941 e 1943, e conhecia a propaganda bélica, em que tinha participado ativamente, ao passo que a sua mulher, Eillen, trabalhara no departamento da censura. Essa experiência está presente na descrição da vida de Winston Smith, dado que a Sala 101 no Ministério do Amor de 1984 seria também inspirada nas instalações da BBC. Se o confronto entre os riscos distópicos à Orwell e à Huxley é interminável, é na verdade porque características de ambos podem reconhecer-se em Benjamin ­Netanyahu, Donald Trump ou Elon Musk.

Encurralado pelas forças telúricas da guerra e da tirania, 1984 foi o mais sombrio dos seus livros, mas entreabriu uma porta de esperança. Margaret Atwood, talvez a escritora distópica contemporânea mais influenciada por Orwell, sugeriu que o ensaio final sobre a novilíngua, escrito em inglês corrente e no pretérito, ou seja, olhando para o passado a partir de um futuro indefinido, demonstraria que o regime do Grande Irmão teria fracassado, pois só assim poderia ser objeto de curiosidade e estudo futuro, não tendo imposto a sua linguagem. Inspirada nesse exemplo, ela própria incluiu no seu livro História de Uma Serva sobre a referência a um seminário acadêmico, realizado centenas de anos depois da história narrada, que estudaria aquele passado de um poder sexista e autoritário, dado, portanto, como derrotado.

Esse paradoxo do futuro que corrige o passado está presente em muita da distopia atual, cuja forma dominante nos séculos XX e XXI passou a ser a ficção científica. Num dos seus ramos, a ficção pós-apocalíptica, estão as mais vibrantes descrições do domínio da máquina, da desumanização das relações sociais e da irresponsabilidade ambiental, que precipitam o mundo num abismo. Mais uma vez há outra porta aberta pela rebeldia de movimentos anticapitalistas, como nos livros de Kim Stanley Robinson.

Talvez então se possa concluir que, se a utopia criou a sua distopia, esta se esgota como uma apologia desumanizada do capitalismo tardio – e que ninguém tem a última palavra. •


*Professor catedrático de Economia na ­Universidade de Lisboa. Foi deputado nacional entre 1999 e 2012 e integrante do Conselho de Estado entre 2015 e 2022. Publicou­ ­recentemente O Futuro Já Não É o Que ­Nunca Foi (2022) e Manual de Economia ­Política (2023).

Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Inquietante mundo novo’

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