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Imaginários em trânsito

Logo depois de ter filmado no Ceará, Karim Aïnouz lança um trabalho feito na Argélia e uma produção britânica

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Identidades. Acima, o cineasta, nascido em Fortaleza e radicado em Berlim, durante as filmagens de Motel Destino, em Beberibe (CE). À direita, uma foto de sua mãe em uma cena de O Marinheiro das Montanhas, em cartaz no cinemas – Imagem: Maria Lobo e Acervo Pessoal/Karim Ainoz
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Embora a referência mais evidente de O Marinheiro das Montanhas, em cartaz desde a quinta-feira 28, seja o documentário Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), narrado, em forma de carta, por um homem que cruza estradas pelo Nordeste, Karim ­Aïnouz ata seu novo filme a outro, mais antigo e menos conhecido: Seams (1993).

Nesse curta-metragem que inaugurou sua carreira, Aïnouz entrevistava a avó, costureira, para, a partir dessa fala, elaborar os significados de ter sido criado em um leito matriarcal dentro de uma sociedade patriarcal, em Fortaleza. Em O Marinheiro das Montanhas, ele resgata a figura masculina que, 30 anos atrás, se materializava apenas em ausência.

Cineasta sempre atento à elaboração verbal das imagens que produz, ­Aïnouz recupera uma expressão aprendida quando estudou nos Estados Unidos, na década de 1990, para definir os dois projetos separados por três décadas: autoetnografia. Mas, se em Seams ele teve vergonha de usar a própria voz na narração, agora se deixa ouvir na tela.

Por meio de imagens documentais e de arquivo e de uma voz em off – que, como o narrador de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, lê uma carta –, O Marinheiro das Montanhas reconta a história do improvável encontro entre seus pais.

No início da década de 1960, sua mãe partiu de Fortaleza para Washington após ganhar uma bolsa de estudos para pesquisar o DNA de uma alga marinha vermelha. Em uma saída para jogar boliche com amigos, conheceu um jovem argelino que construía estradas ao mesmo tempo que se preparava para a guerra pela libertação de seu país, sob domínio francês.

O casal chegou a viver junto no Colorado, mas, no momento em que ela engravidou, ele teve de voltar para a Argélia. Para não ter o filho sozinha nos Estados Unidos, sua mãe voltou para o Brasil.

“Ele prometeu buscá-la para começarem uma vida juntos na Argélia”, conta-nos o narrador. “Essa é uma história só possível no contexto das diásporas coloniais da década de 1960”, complementa Aïnouz, em entrevista a CartaCapital em sua passagem por São Paulo, para a concorrida pré-estreia do longa-metragem.

O Marinheiro das Montanhas insere-se numa certa linhagem de narrativas pós-coloniais que tem encontrado, especialmente na literatura, terreno fértil para o exercício criativo dos filhos das diásporas.

E muitas dessas histórias têm sido contadas por pessoas negras. Mas a história de Aïnouz é a história do descendente branco de um homem árabe, nascido na África do Norte que, na vida adulta, se estabeleceu na França – o país do qual seus conterrâneos, e ele próprio, lutaram para se libertar.

O Marinheiro das Montanhas, sobre seus pais, é um retrato das diásporas pós-coloniais

Foi, inclusive, ao mudar-se para a França para viver um período com o pai e estudar que o diretor se descobriu árabe. Se, no Brasil, o nome Karim gerava dúvidas mil – Ricardinho? Carlinho? Karem? –, na França ele funcionou como um carimbo.

“Era a época das insurreições das primeiras diásporas e eu, de repente, por mais que dissesse ser brasileiro, fui catapultado a argelino”, diz. “Aquilo deu um ‘tilt’ na minha cabeça.” Mas a confusão ainda maior estava por vir. Depois do ataque às Torres Gêmeas de Nova York, em 2001, cada passagem por um aeroporto era um alarme a soar. Um árabe com passaporte brasileiro? Aquilo cheirava logo uma coisa da Al-Qaeda.

A despeito da peça que parecia faltar na constituição de sua identidade, ­Aïnouz nunca foi para a Argélia. A decisão de fazer a viagem – e já com o desejo latente de tirar dela um filme – só foi tomada quando sua mãe morreu. É que ir para a Argélia seria, em sua cabeça, traí-la. Aquele país, afinal de contas, era indissociável do trauma do abandono. “Deve ter sido estranho: criar um filho sem conhecer direito a outra metade dele”, pensa, pausadamente, o narrador.

O filme, inicialmente, chamava-se Argelino por Acaso. Mas a viagem, que incluiu o caminho rumo ao pico de uma montanha no Norte da África, esfacelou-o. Karim não era argelino por acaso. Era argelino por contingências históricas e políticas. Era constituído pelo que a escritora Djaimilia Pereira de Almeida, nascida em Luanda, chama de “identidades do limbo”, geradas pelos antigos regimes coloniais do século XX.

Mas o limbo, no caso de Aïnouz, transformou-se em trânsito. Trânsito de imagens, da imaginação e da vida – sua residência é em Berlim. Logo depois da estreia de O Marinheiro das Montanhas, ele lançará, no Festival do Rio, este mês, o drama histórico britânico Firebrand, com Alicia Vikander e Jude Law, exibido no Festival de Cannes.

No mês passado, ele estava em Beberibe, a 80 quilômetros de Fortaleza, rodando Motel Destino, sua primeira produção brasileira desde A Vida Invisível (2019), ganhador do prêmio da mostra Un Certain Regard, de Cannes. Em 2024, filmará, na Espanha, Rosebushpruning, com Kristen Stewart, Josh O’Connor e Elle Fanning.

Filme-ensaio forjado em meio a projetos grandes, inseridos no mercado internacional do cinema independente e com maiores ambições de público, O Marinheiro das Montanhas pode ser definido como uma obra íntima. Mas o “eu” que o conduz, como faz questão de sublinhar Aïnouz, não roça nem a psicanálise nem o narcisismo. “Aos 30, eu não teria coragem de fazer um filme como esse. Gozo de uma liberdade que tem a ver com a idade”, diz, aos 57. “Acho, ao mesmo tempo, que esse é o mais político dos filmes que fiz.” •

Publicado na edição n° 1279 de CartaCapital, em 04 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Imaginários em trânsito’

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