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Imagens em combustão

O Festival de Berlim apresenta-se como um painel da arte no pós-pandemia

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Imagens em combustão
Vidas partidas. Na mostra Generation, voltada a filmes sobre a juventude, o Irã é retratado por meio de uma milícia feminina (Dream’s Gate) e a Ucrânia por meio de um grupo de adolescentes que vai ao Himalaia (We Will Not Fade Away) - Imagem: Berlinale
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O novo cartaz do Festival de Berlim, espalhado pela cidade, desperta nos passantes um tipo de nostalgia carinhosa de estar diante de uma grande aventura. São figuras de jovens e velhos, redondos e quadrados, claros e escuros, homem, mulher e diversos, que observam ao serem observados por quem passa, sentados em poltronas de uma sala de cinema. O urso-polar, símbolo de Berlim e marca inconfundível da Berlinale, não está mais à solta, depois de anos a fio circular pela cidade em fevereiro – abstrato, desenhado, fotografado, com óculos ou a balançar nos telhados.

Os novos motivos em azul-vermelho-púrpura, criados pela artista gráfica Claudia Schramke, dirigem-se ao que a diretora administrativa da Berlinale, Mariette Rissenbeek, chama de “centro indispensável de um festival de cinema numa metrópole, o público”, ansiosamente esperado de volta.

Após duas edições sob as limitações impostas pela pandemia, os filmes, o mercado cinematográfico, os debates, as festas e o público retornam sem restrições à Berlinale – segundo maior festival de cinema do mundo, depois de Cannes. A edição de 2021 foi feita de forma completamente digital, para o mercado e a imprensa. Apenas em junho, no verão berlinense, o público pôde assistir a filmes selecionados, ao ar livre. Em 2022, as salas foram liberadas, mas com restrições severas e o número de ingressos 50% menor.

Agora, tudo parece ter voltado ao que era antes na Potsdamer Platz, o centro do festival. Apertos de mão, beijos e abraços; assentos no cinema juntinhos uns dos outros. Vez ou outra passa alguém com máscara.

As guerras, a política e os desafios para a recuperação do público rendido ao streaming estiveram no centro desta edição

“O tema pandemia não aparece de forma relevante entre filmes inscritos ou selecionados neste ano”, diz Anne­ ­Henckel-Donnersmarck, curadora da seção de Curtas-Metragens da ­Berlinale, onde o filme brasileiro As Miçangas, de ­Rafaela Camelo e Emanuel Lavor, compete por um urso. Mas o tom se tornou mais grave. “Principalmente os filmes dos jovens cineastas mostram um cenário mais pessimista do futuro.”

A entonação política da organização do festival é forte e chega a fazer sombra sobre os astros convidados. Não uma estrela de Hollywood, mas o presidente da Ucrânia, Wolodymyr Zelensky, foi conectado por videoconferência na abertura do festival. Ele fez um apelo emocionado e perguntou: “Pode a arte ficar fora da política?”

Além do engajamento explícito contra a guerra na Ucrânia, a Berlinale declara solidariedade aos manifestantes contra o regime Mullah, do Irã. Há filmes ucranianos­ e iranianos em várias seções e eventos especiais, além de apoio financeiro ou coproduções para cineastas dos dois países.

O broche da Berlinale tem as cores da Ucrânia. A atriz iraniana Golshifteh ­Farahani, exilada na França, faz parte dos sete jurados da competição principal. Ela levou o público às lágrimas no discurso na abertura do festival: “O Irã é uma ditadura, isso não é apenas algo filosófico ou teó­rico. Falta oxigênio às pessoas, falta o ar para respirar no Irã”, disse Farahani. “Temos a sensação de que o mundo está quebrando à nossa volta. O cinema está aí para nos aquecer em tempos de crise.”

A indústria cinematográfica está em Berlim aquecendo-se para a era pós-pandemia e verificando as tendências do que trará 2023. Sente-se no ar a atmosfera otimista do setor para a volta a uma certa normalidade.

Mostras paralelas. Entre as seis produções brasileiras selecionadas está o longa-metragem A Propriedade, de Daniel Bandeira, exibido no Panorama – Imagem: Loco Films/Símio

“Este festival presencial em Berlim representa para mim o fim da pandemia. Mas isso não significa a retomada da vida como era antes”, diz Igor Kupstas, diretor da distribuidora O2 Play. “Todos estão tentando entender os efeitos do que aconteceu e definir para onde vamos, qual o status do streaming hoje, nos diferentes países.”

Kupstas veio a Berlim para participar do European Film Market (EFM), que ocorre dentro da Berlinale e facilita não só o encontro entre produtores e distribuidores, como também oferece espaços de discussão e debates sobre os caminhos da indústria cinematográfica.

Este ano, expositores de 128 países apresentam suas produções no mercado. “Estamos completamente no mesmo nível, em termos de credenciamentos, que estávamos em 2020”, disse o diretor da EFM, Dennis Ruh. No centro das mesas permanece o público: estão sendo intensamente debatidos o declínio das bilheterias nos cinemas e o desafio de pensar outros modelos. Além disso, discutem-se novas formas de financiamento e circulação, principalmente no campo do streaming, e de como manter a diversidade cinematográfica no cenário pós-pandêmico.

No relatório preliminar sobre 2022, o Observatório Europeu do ­Audiovisual escreveu que a ida ao cinema na União Europeia e no Reino Unido aumentou 63% em relação ao ano anterior. Ou seja, noves fora, um terço do público ainda não retornou. É cedo para analisar as bilheterias por origem cinematográfica, mas os dados iniciais indicam que as vendas de ingressos nos países da União Europeia e do Reino Unido – assim como no Brasil – se concentram, ainda mais do que até 2019, nos blockbusters norte-americanos, como Avatar e Top Gun: Maverick.

André Sturm, diretor da Pandora ­Filmes e do Cine Belas Artes, em São ­Paulo, vê o interesse do público nas grandes produções como indicador da perseverança do cinema, principalmente em relação ao streaming. “Os ­streamings não vão destruir o cinema, pois o cinema não é só o filme, é um programa. Os ­blockbusters, que vivem de muita propaganda, estão fazendo o mesmo público que faziam antes da pandemia”, diz.

O papel do festival pós-pandemia permanece inalterado ou até aumentou, segundo Sturm. “O festival continua servindo como curadoria e publicidade para as produções fora do grande circuito. Essas ganham em valor e interesse do público”, diz. Para o mercado, é a chance de encontrar bons filmes que, de outra forma, passariam despercebidos. “O mercado ao vivo oferece possiblidades que no virtual não existem. Num festival como Berlim, vou assistir a um filme que estou interessado e, se o filme for chato, não fico mais de 15 minutos e entro em outro filme na sala ao lado, que eu talvez jamais visse, e posso descobrir algo interessante.”

O papel dos festivais na era digital permanece inalterado ou se tornou até maior

O festival de Berlim selecionou neste ano 287 filmes de 67 países, entre eles 19 na competição principal, 20 na dos curtas-metragens e outros 20 na premiação Encounters. Seis produções brasileiras foram selecionadas. Além do curta-metragem As Miçangas, o filme ­O ­Estranho, de Flora Dias e Juruna Mallon, tem estreia mundial na seção Forum; A ­Propriedade, de Daniel Bandeira, está no Panorama; e o curta-metragem ­Infantaria, de Laís Santos Araújo, na Generation.

O curta-metragem A Árvore faz parte de uma instalação no Forum Expanded. O filme A Rainha Diaba, de Antonio Carlos da Fontoura, de 1973, é mostrado, em cópia restaurada, no Forum Special. Na produção, Milton Gonçalves, falecido no ano passado, aparece ao lado de um elenco que fez história no cinema brasileiro.

O musical Ash Wednesday, de João Pedro Prado e Bárbara Santos, é uma curiosidade: tem elenco brasileiro, conta em português uma história brasileira, mas é uma produção inteiramente alemã e, como tal, foi selecionado para a Perspectiva do Cinema Alemão. A Berlinale também elegeu brasileiros para sua seção ­Talents, destinada a apoiar obras que ainda vão surgir – caso do projeto da artista visual e cineasta Janaína Wagner.

Cartaz novo, era pós-pandêmica e guerra. O tapete vermelho está colocado como sempre e a tão almejada estátua dos prêmios continua sendo a mesma, de um urso, de ouro ou de prata, que foi criado pela mãe de todos os ursos de Berlim, a escultora René Sintenis. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1248 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE MARÇO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Imagens em combustão “

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