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Imagens da introspecção

Os Fabelmans, de Steven Spielberg, chama atenção para a onda de sofisticados filmes memorialísticos produzidos no coração da indústria

Imagens da introspecção
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Retorno ao passado. “Este filme é, para mim, uma forma de trazer minha mãe e meu pai de volta”, disse Spielberg, durante estreia mundial do novo projeto - Imagem: Universal/Amblin e Gage Skidmore
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Cerca de dez anos atrás, durante a produção de seu emocionante filme político de época Lincoln, Steven Spielberg começou a perceber que precisava contar outra história. Para o diretor, cuja carreira o levou dos campos de batalha da Primeira e da Segunda Guerra Mundial à linha de frente da Guerra dos Mundos em New ­Jersey, de um parque temático de dinossauros na América Central a um campo de confinamento na China ocupada pelos japoneses, as fontes de inspiração só conheciam os limites da imaginação. Mas, como revelou Spielberg no festival de cinema de Toronto, em setembro de 2022, havia chegado a hora de olhar para dentro, de explorar a própria história de vida.

A história se passa em sua infância, no próspero estado do Arizona, no pós-Guerra, com um pai amoroso, mas distraído e viciado em trabalho, que foi fundamental no desenvolvimento dos primeiros computadores, e uma mãe entusiástica e talentosa para a música. E ela inclui um doloroso e chocante segredo de família e o colapso do casamento de seus pais, fatos que foram filtrados e processados por meio de sua paixão pelo cinema. Tudo isso é apenas ligeiramente ficcionalizado no maravilhoso e intensamente pessoal Os ­Fabelmans, em cartaz desde a quinta-feira 12.

A recepção da crítica foi tão calorosa e difusa quanto o próprio filme. A revista Rolling Stone o descreveu como “uma das coisas mais marcantes, esclarecedoras e vitais que ele fez”. O Hollywood ­Reporter falou sobre o filme “entrar imediatamente para a primeira linha das memórias de artistas”. Finalmente, a mais privada das figuras públicas havia convidado as pessoas para entrarem em sua vida. Mas Spielberg não é o único autor que chegou a um momento de introspecção.

James Gray, o diretor de grandes e fortes histórias nova-iorquinas, como Os Donos da Noite e A Imigrante, também encontrou inspiração na própria infância, à margem da delinquência no bairro de Queens, nos anos 1980, para ­Armageddon Time, que estreou no Brasil em novembro. O filme confronta os arrependimentos e a culpa carregados por Gray desde a adolescência.

O impacto do lockdown e as reflexões provocadas pela pandemia são apontados como um ponto de virada em algumas carreiras

O mexicano Alejandro González Iñárritu, diretor de Birdman e O Regresso, afirma que seu expansivo e extravagante Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades, disponível na Netflix, não é estritamente autobiográfico. Mas os paralelos são claros: é sobre um célebre cineasta mexicano que se muda do ­país natal para os Estados Unidos, com repercussões sobre o destino da própria família. “Acho que tem a ver com a minha idade e com o tempo que passou”, disse Iñárritu ao LA Times. “Quando os filhos crescem, há desafios para tentar entender a decisão que tomei – ou que qualquer imigrante tomou – de deixar meu país.”

Já Kenneth Branagh, no ano passado, remodelou sua infância em uma Irlanda do Norte turbulenta, dentro de uma visão infantil cálida da família, do cinema e da política.

Essa onda de filmes autobiográficos de alto nível foi aberta por Roma, de ­Alfonso Cuarón, vencedor de vários Oscar em 2019, que se baseou na infância de classe média do diretor em um subúrbio da Cidade do México, mas colocou em primeiro plano uma das pessoas mais importantes na vida da família: a empregada.

Não é, obviamente, uma abordagem nova nas cinematografias. Numerosos cineastas – Joanna Hogg, por exemplo, ou Pedro Almodóvar e, antes, Federico Fellini – construíram carreiras a partir da garimpagem de aspectos das próprias vidas. Mas vemos um grau sem precedentes de introspecção – e até vulnerabilidade – de autores de renome que, até aqui, tinham atravessado as carreiras reivindicando as fronteiras distantes da narrativa cinematográfica. É justo dizer que o cine-memória está vivendo um momento especial. Mas por que agora?

Vulnerabilidades expostas James Gray, em Amarggedon Time, e Kenneth Branagh, em Belfast, também usaram suas infâncias como fonte de inspiração – Imagem: Universal/Focus

Há uma ideia persistente do filme autobiográfico como um ponto marcante numa carreira, algo que vem no início ou no final do corpo da obra. Falando após a estreia mundial do filme, em Toronto, Spielberg enfatizou que Os Fabelmans não é um ponto final: “Não é porque decidi me aposentar e este é o meu canto do cisne, não acreditem nisso”.

Mas um fator que ele e Branagh citaram como significativo foi o ponto forçoso da pandemia e as reavaliações por ela provocadas. O isolamento social nos levou a olhar para dentro e a primeira onda de Covid nos confrontou com a inevitabilidade da nossa morte.

Embora Spielberg tenha pensado em um filme de memórias pela primeira vez há uma década, foi só na pandemia que o momento pareceu finalmente chegar. “Quando veio a Covid, todos tínhamos muito tempo e muito medo. À medida que as coisas ficavam cada vez piores, eu pensava se ia deixar alguma coisa para trás, o que eu precisava resolver e desembrulhar sobre minha mãe, meu pai e minhas irmãs. Este filme é, para mim, uma forma de trazer minha mãe e meu pai de volta.”

No ano passado, falando ­sobre ­Belfast, Branagh disse quase o mesmo: “No momento em que chegamos ao início do primeiro lockdown, tive essa sensação geral do quanto o tempo era precioso – simplesmente, não sabemos mais o que o futuro nos reserva. Eu estava chegando aos 60 e de repente senti como se não tivesse escolha a não ser tentar contar essa história”.

Pode haver outro fator em jogo: uma sensibilidade crescente sobre quem vai contar qual história, ligada à política identitária. É improvável que se A Cor Púrpura fosse feito hoje, Spielberg fosse aceito como diretor sem qualquer tipo de contestação. Seu nome está nos créditos de uma adaptação musical do romance de Alice Walker a ser lançada no próximo ano, mas como produtor. A direção cabe ao cineasta afro-americano Blitz Bazawule. Quando a ideia do direito de reivindicar as histórias de outras pessoas é cada vez mais examinada, virar a câmera para a própria vida pode ser uma decisão lógica.

“Vimos que a política identitária tem sido centrada no cinema independente, especialmente nos primeiros trabalhos. E sinto que isso deve ter impactado, talvez, alguns dos ‘mestres’”, diz a produtora de cinema e chefe do fundo do British Film Institute, Mia Bays. “Grande parte da jornada de um artista é entender a si mesmo através de sua arte. E acho que o público e a indústria estão exigindo autenticidade.”

Diante da crescente sensibilidade em relação ao lugar de fala, a autobiografia mostra-se uma decisão mais lógica

Mas então há outra opção: que o cine-memória é essencialmente uma forma de terapia muito pública e muito cara. Esse pode ser o caso de Gray, que, através do Armageddon Time, confronta a própria culpa pelo abandono de uma amizade num momento de crise. Pouco depois da estreia em Cannes, ele disse: “Tentei ser o mais honesto possível e, de certa forma, me responsabilizo o máximo possível … Para mim, o processo pelo qual qualquer pessoa criativa deve passar não é promover uma ideia cor-de-rosa, agradável ou mentirosa, mas realizar algo honesto, porque é aí que o diálogo e o debate podem começar”.

Embora Spielberg não tenha contado sua própria história antes, o relacionamento espinhoso com seu pai influenciou muitos de seus filmes. E.T. – O Extraterreste começou como uma tentativa de contar a história do divórcio de seus pais. “Mesmo depois de saber a verdade (sobre o rompimento), culpei meu pai.”

Enquanto nos filmes anteriores as figuras paternas eram distantes, até negligentes, em Os Fabelmans o pai, interpretado por Paul Dano, é tratado com mais simpatia. Há uma sensação de encerramento. Talvez, aos 75 anos, com uma carreira cinematográfica de quase cinco décadas, Steven Spielberg tenha, finalmente, feito as pazes com o passado. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1242 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Imagens da introspecção”

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