Cultura
IL Duce, por ele mesmo
Mussolini: O Filho do Século retrata a ascensão do ditador e expõe os mecanismos contraditórios do fascismo


“Para o futuro, a vanguarda, a revolução: hoje nasce o fascismo!” O discurso de Benito Mussolini (1883–1945) para exaltar o movimento criado em 1919 é entoado no primeiro episódio da minissérie Mussolini: O Filho do Século.
Disponível na plataforma de streaming Mubi desde a quarta-feira 10, a série, com oito episódios lançados semanalmente até 22 de outubro, revisita o fascismo sob o ponto de vista de seu personagem-título.
Coproduzida por Itália e França e rodada nos míticos estúdios da Cinecittà, em Roma, Mussolini foi inteiramente dirigida pelo inglês Joe Wright, conhecido pelos romances históricos Orgulho e Preconceito (2005) e Desejo e Reparação (2007) e pela cinebiografia O Destino de Uma Nação (2017), sobre Winston Churchill (1874–1965).
Adaptação da biografia M, O Filho do Século (Intrínseca), de Antonio Scurati, a série reproduz a estrutura fragmentada do livro e aborda os anos iniciais do fascismo, mostrando o personagem a partir da formação do movimento ultranacionalista Fasci di Combattimento.
Em entrevista a CartaCapital, Wright diz que os roteiristas Stefano Bises e Davide Serino tentaram, ao máximo, aproximar-se do estilo de Scurati. “O livro é como uma colagem de formas diferentes: cartas, discursos, artigos de jornal, trechos de ficção. Expandimos essa estrutura para, de alguma forma, ilustrar a tentativa de Mussolini de controlar sua própria narrativa”, diz. “Quisemos retratar o paradoxo de um líder que quanto mais concentrava poder mais perdia o controle.”
Em um dos discursos recriados, Mussolini, colocando-se contra a realização de eleições e contestando o Estado como manejo institucional de uma nação, declara: “O fascismo é tudo e o oposto de tudo”. É, no entanto, esse mesmo Estado que ele dominará a partir de 1922, ao ser nomeado primeiro-ministro da Itália, e, especialmente, de 1925 em diante, quando aplica as Leggi Fascistissime (Leis Fascistíssimas) e se autointitula o Duce, líder supremo do país.
Um elemento que amplia o caráter vigoroso e pop da série é o ambiente sonoro criado por Tom Rowlands, integrante do duo Chemical Brothers. O clima perturbador é aprofundado pela opção de se colocar, à House of Cards, o Duce a conversar diretamente com o espectador. Várias vezes ele interrompe a ação, olha para a câmera e nos convida à cumplicidade.
Quem, por meio dos gestos corporais e da entonação, recria essa figura é o ator italiano Luca Marinelli – de filmes como Martin Eden (2019) e As Oito Montanhas (2022). Com alguns quilos a mais, ele se aproxima do jeito peculiar como o Duce se expressava.
“Quisemos retratar o paradoxo de um líder que quanto mais concentrava poder mais perdia o controle”, diz o diretor Joe Wright
“A necessidade de transformar meu corpo para representar Mussolini veio naturalmente”, afirma o ator, que também conversou com Carta Capital na rodada de entrevistas para a divulgação da série. “Passei a ocupar mais espaço, fisicamente, mas, ainda assim, era essencial que eu não desaparecesse no papel. E o processo, é claro, envolvia muita massa, pizza e sanduíches o dia inteiro.”
Para compor essa figura, Marinelli analisou de forma detalhada a oratória totalitária de Mussolini, famosa por seu poder de mobilização, e estudou registros da propaganda fascista e livros escritos pelo ditador.
Nada disso o deixou indiferente: “Eu sentia a violência daquele discurso. Artisticamente, foi uma aventura incrível, mas eticamente foi dificílimo. Descobri coisas horríveis e fiquei surpreso, de forma negativa, com a maneira como o poder foi parar nas mãos desse homem. Parecia impossível, mas infelizmente aconteceu”.
Esse é um ponto controverso da série: a representação íntima de uma figura responsável por imensas atrocidades, incluindo o envolvimento na guerra mundial mais brutal da história. Quando começou a ser exibida em canais europeus, no início deste ano, Mussolini – O Filho do Século recebeu críticas nesse sentido.
Para Joe Wright, no entanto, não se trata de absolver ou suavizar Mussolini, mas de entender a sua dimensão humana: “Não acho que demonizar ajude na abordagem dessas figuras. Eles eram humanos e, por isso, somos responsáveis por eles também. Se dissermos que eram apenas monstros, não há nada que possamos fazer para evitar que coisas assim se repitam”.
Os longos 127 dias de filmagem foram, porém, bem menos tensos do que a gravidade do tema pode indicar. “O único jeito de passar por algo tão sombrio foi com riso e colaboração entre nós”, afirma o diretor.
O espírito coletivo – e, apesar de tudo, leve – se deixa ver na movimentação de um elenco múltiplo que, em meio a uma grande riqueza de detalhes, recria figuras políticas e sociais que orbitaram em torno de Mussolini nos anos 1920. A produção capta um país em ebulição, com a democracia fragilizada, grandes problemas sociais e uma população raivosa diante de um líder carismático e antidemocrático.
Wright, ao dirigir Mussolini, tinha, obviamente, em mente os paralelos entre a história que conta e a ascensão de presidentes com viés totalitário no século XXI: “Mussolini pegou preocupações legítimas de um povo marginalizado e as explorou em benefício próprio. Ainda vemos isso em vários lugares”.
O apelo contemporâneo da série também é lembrado, com ênfase, pelo ator Luca Marinelli: “A genialidade de Joe e dos roteiristas foi combinar presente e passado. Eles usaram música atual, quebraram a ‘quarta parede’ (permitindo que o ator fale diretamente ao espectador) e criaram uma linguagem que nos permite estar cem anos no passado e, ao mesmo tempo, estabelecer relações com o presente”. •
Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital, em 17 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘IL Duce, por ele mesmo’
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