Cultura
Herança bendita
Lisa Ginzburg, neta de Natália e filha de Carlo Ginzburg, revela o talento como narradora em seu primeiro romance lançado no Brasil


“A família – pensada como um projeto, um conceito, um ideal, um ponto de partida e de chegada – era uma forma distante, um desenho ao qual jamais teríamos pertencido”, nos diz Madalena, a narradora de Cara Paz, na tentativa de dar sentido ao turbilhão de sua existência.
Neste que é o primeiro romance de Lisa Ginzburg lançado no Brasil, a família deixa marcas profundas não pela presença, mas pela ausência.
Foi a própria avó da autora, Natalia Ginzburg (1916-1991), quem um dia justificou assim o forte papel que a ideia de família tinha em seus escritos: “É porque é na família que tudo começa; nela estão as sementes do que germinará”.
Se, no caso de Madalena, a personagem, a família se apresenta como falta, no caso de Lisa, a autora, a família é uma marca não apenas afetiva, mas intelectual. “Hoje percebo que me tornar escritora foi mesmo uma escolha corajosa. Não é fácil ter esse sobrenome na Itália”, disse ela, em entrevista recente ao jornal O Globo.
Além de neta de Natalia, com quem conviveu de forma muito próxima até os 25 anos e chegou a partilhar seus primeiros textos, Lisa é filha do prestigiado historiador Carlo Ginzburg, autor de obras de referência, como O Queijo e os Vermes (Companhia das Letras).
Não é, porém, nem à avó nem ao pai que ela dedica Cara Paz. É à sua mãe. E poderia ser a todas as mães do mundo, tamanho o afeto depositado por sua narradora sobre a figura materna.
A mãe de Madalena, Gloria Recabo, deixou a casa em que viviam ela, sua irmã, Nina, e seu pai, Sebba Cavallari, um entristecido fotógrafo de casamentos, quando as meninas tinham 9 e 7 anos. De repente, ambas se viram na condição de “órfãs sem sê-lo”. Criadas por uma jovem esportista contratada para cuidar delas, Maddi e Nina desenvolvem, a partir dessa estrutura trincada, uma relação simbiótica.
“Onde é que eu terminava e Nina começava?”, pergunta-se a narradora. “Somas de uma mesma falta”, as irmãs partilham de uma intimidade desmedida. Maddi vive na França com o marido e os filhos e, embora seja a dona da voz central do livro, é uma personagem mais difícil de ser decifrada – inclusive fisicamente – do que Nina.
A forma pela qual Lisa Ginzburg desenha o perfil de cada um de seus personagens é perspicaz e envolvente. Da mesma forma que ilumina o presente, o redemoinho do passado é ressignificado, na história, conforme as personagens, já adultas, agem, falam ou mandam mensagens de WhatsApp. Cada figura esculpida pelas palavras de Lisa carrega em si um mundo de contradições.
CARA PAZ. Lisa Ginzburg. Tradução: Francesca Cricelli. Editora Nós (256 págs., 70 reais)
Sua escrita ecoa a de sua avó, sobretudo aquela presente em livros como Léxico Familiar e As Pequenas Virtudes (ambos lançados pela Companhia das Letras), assim como ecoa sua incontornável conterrânea Elena Ferrante.
Cara Paz pode ainda ser visto quase como um espelho invertido de As Três Irmãs, de Tchekhov, peça na qual o passado era o idílio. Na casa onde Maddi e Nina passaram a infância, havia, ao contrário, “um silêncio profundo, espesso, que ressoava em todos os cômodos”.
Mas, como indica o título, Cara Paz não é um livro apenas sobre a aspereza da vida. É também sobre as construções e reconstruções de nós mesmos e das versões que temos dos outros. O título original, Cara Pace, pode ser lido como Carapace, que significa carapaça em italiano. Sob sua carapaça brilhante, a tartaruga, animal que as irmãs ganharam em troca do cachorro desejado, esconde-se, mas também se protege para poder viver. •
VITRINE
O Mundo Sem Fim (Nemo, 196 págs., 124,90 reais), graphic novel feita em parceria pelo especialista em energia e clima Jean-Marc Jancovici e pelo ilustrador Christophe Blain, tornou-se, na França, um best seller. O livro olha para o drama do meio ambiente de forma a um só tempo profunda e bem-humorada.
Feito a partir de um programa de apoio à cultura do estado de São Paulo, As Velhas (Jandaíra, 128 págs., 53 reais), da jornalista Adília Belotti, reúne 12 contos atravessados pelo tema da velhice e tendo como cenário a cidade de São Paulo.
O pesquisador e professor Thomas Travisano escreveu aquela que se pretende a mais profunda e completa biografia de Elizabeth Bishop (Companhia das Letras, 526 págs., 129,90 reais), poeta norte-americana que, ao apaixonar-se pela arquiteta Lotta de Macedo Soares, fez do Brasil seu país de residência.
Publicado na edição n° 1266 de CartaCapital, em 05 de julho de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Herança bendita’
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