Cultura

Heliópolis se torna referência nacional em efervescência cultural

A populosa comunidade da Zona Sul de São Paulo revela uma vocação artística que fura o bloqueio da indústria cultural

Foto: David Kennedy
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Era um terreno que virou gleba, que abriu espaço para a prefeitura criar alojamentos provisórios para moradores de outras favelas, que acabou por atrair levas de retirantes, que se tornou moradia para mais de 100 mil habitantes, que cresceu tanto que hoje é um bairro de nome grandioso: Cidade Nova Heliópolis. Localizado na Zona Sul de São Paulo, Heliópolis não virou tema de novela da Rede Globo, como aconteceu com a sua irmã Paraisópolis, em 2015, mas conseguiu um feito maior. Ela é uma das comunidades de maior efervescência cultural do País, referência para tantas outras periferias e ponta de lança para ousados projetos artísticos.

Em que outro lugar se pode imaginar a presença de uma emissora de rádio e uma biblioteca comunitária com mais de 12 mil livros (ambas iniciativas da Organização Não Governamental Unas, criada em 1978), uma orquestra sinfônica (do Instituto Baccarelli, criado em 1996 pelo maestro Silvio Baccarelli após um incêndio na favela e hoje espaço para a educação musical de mil crianças e jovens), uma companhia de teatro e, mais recentemente, um projeto com 41 painéis grafitados e uma Editora Gráfica para dar voz a escritores periféricos? Heliópolis tem tudo isso.

Foto: David Kennedy

Há três semanas, foi exibido no bairro o documentário “Uma Virada de Cores”, que retrata como foi o projeto de grafitar 41 painéis nos muros das casas dos moradores, envolvendo mais de 500 jovens em oficinas realizadas por 17 artistas brasileiros e os colombianos Johan Andres (cujo codinome é Kano Delix), Johan Alberto (Sony) e Robert Sled (Fuan Nexio). O projeto é uma iniciativa da Associação de Intercâmbio Sociocultural e Empresarial Brasil-Colômbia em parceria com a produtora carioca Burburinho Cultural. O objetivo era reproduzir no Brasil uma iniciativa exitosa que ocorreu na Comuna 13, em Medellín. Esse distrito ficou famoso mundialmente porque a arte falou mais alto que a disputa entre paramilitares e guerrilheiros. A partir de ações de “acupuntura urbana”, como remodelar parques e praças, restaurar quadras esportivas, inaugurar bibliotecas e criar um sistema decente de transporte, no caso um teleférico, os moradores decidiram fazer a sua parte. Cederam as paredes de suas casas para que grafiteiros contassem a história da comuna. Jovens passaram a ter orgulho do lugar em que viviam.

“Desde o início, Heliópolis nos pareceu um terreno fértil para implementar esse projeto”, relata Thiago Ramires, da Burburinho Cultural. Por já ter um histórico de ações culturais e socioeducativas, Ramires sabia que o hoje bairro abraçaria esse projeto. A dificuldade seria manter os jovens envolvidos em uma vivência de cinco dias. “Foi desafiador trazer esse aluno para se concentrar em uma oficina de grafite, de desenho, sem computador, games ou redes sociais, mas só com régua, papel, tesoura, tinta e spray. Havia uma vontade e um prazer desses jovens em se comunicarem por meio de expressões menos tecnológicas.”

Foto: Vini Soares

A dinâmica do projeto foi sempre negociar com a comunidade. Eles davam ideias e o arte-educador com sua turma definiam o layout, pintavam e geravam uma imagem. Alguns moradores torceram o nariz; alguns, por razões religiosas, discordavam do desenho produzido nos muros de suas casas. Houve situações em que foi necessário repintar. “Isso tem a ver com a natureza do grafite, que é um pouco marginal, de intervir em um lugar e pintar sem necessariamente ser o que todo mundo quer ver”, diz Ramires.

Para o grafiteiro Eduardo Credo, 34 anos, que produz arte desde 2000, é necessário pintar “em todos os lugares”, mas foi instigante participar do projeto no “Helipa”. Nascido em Cidade Tiradentes, na periferia, e hoje morando em Santa Cecília, na região central, Credo percebeu que o grafite poderia colorir também vidas. “Todos os jovens fizeram trabalhos melhores do que o esperado, mas tinha uma menina que me surpreendeu. Era a mais calada e tímida, teve problemas de depressão, mas ela ‘desembaça’ muito bem e, quando fomos pro muro, se destacou muito, pintando com facilidade.”

 

Outro documentário, Vela na Billings por Navegando nas Artes, em exibição no Cine-BrasilTV (por streaming e nas tevês a cabo), revela como jovens do bairro do Grajaú, no extremo sul paulistano, estão sendo incluídos por meio da prática esportiva e da grafitagem que fazem em barcos a vela na Represa Billings. A diretora Caru Alves de Souza assina sete produções da série Causando na Rua, com direção-geral da cineasta Tata Amaral. A segunda temporada revela como a cultura brota em comunidades e entre jovens periféricos do País, seja nas batalhas de mestres de cerimônia no bairro recifense da Água Fria (Batalhas de MCs), nas colagens-protesto de lambe-lambe do coletivo feminista Deixa Ela em Paz (Mulheres na Rua), seja no retrato do Exorcity (Humildade sem Falsidade), um tradicional grupo de pichadores de São Paulo, e dos rappers Xemalami (Xadrez sem Muros), que mostram como os jovens pobres precisam lutar contra as formas de opressão.

Cena do documentário Vela na Billings por Navegando nas Artes | Foto: Cadu Silva

Produções como estas só revelam que há mais arte circulando no Brasil do que aparece na imprensa. A indústria cultural não dá muitas brechas para locais como Água Fria, Grajaú, Itaim Paulista ou Heliópolis. Mas a lição que se aprende no contato com esses moradores é que outra história já está acontecendo.

“Meus Jabutis são eles ali”, apontava PC Marciano para um grupo de seis escritores estreantes em Heliópolis. Em 29 de junho, Marcela Trava, Moniara Barbosa, Guto Souza, Hitátila Quele Silva de Souza, Shirlei Moura e Júlia Bueno lançavam seus livros pela Editora Gráfica Heliópolis. Em comum, todos são autores LGBTs, que vendiam e autografavam suas obras numa escola CEU do bairro. “Não quero concorrer com ninguém, nem quero ganhar o Prêmio Jabuti. Criamos uma editora para fazer um movimento literário em Heliópolis”, diz o autor da iniciativa.

PC Marciano ergueu pelo próprio esforço a Editora Gráfica Heliópolis. | Foto: Divulgação

PC Marciano já foi office-boy, metalúrgico, mecânico, gerenciador de riscos, ator, cineasta e agitador cultural. Em 2009, aventurou-se a escrever Melissa, um romance sobre uma escritora que passa por maus bocados até ser reconhecida. Tirou algumas cópias do livro e foi distribuindo de editora em editora. Foram cinco anos de “nãos”. Descobriu que não só ele, mas outros moradores de Heliópolis também tiveram originais recusados. Até que em 2017 um livreiro o encontrou e disse que iria publicá-lo. Na mesma época, soube da história de um jovem que vendeu o carro para publicar um livro, mas a mulher o abandonou e a sonhada primeira obra tinha virado sinônimo de infelicidade. PC (de Paulo César) Marciano decidiu que, em vez de publicar sozinho, iria se unir aos demais autores.

Criando leitores e escritores

Em 2017, ele arriscou se inscrever no edital do programa Rumos, do Itaú Cultural. Foi contemplado com 100 mil reais, dinheiro que garantiu a publicação das primeiras obras, a compra da impressora e dos computadores, da máquina de corte e dos demais equipamentos para acabamento de um livro. O objetivo inicial era chegar até dezembro do ano passado com quatro títulos lançados. Hoje tem mais de 20 obras, que abordam temáticas das mais variadas. “Escritor não é só Clarice Lispector ou Mario Quintana. Quero criar um público que seja leitor e escritor, de pessoas que se vejam e se reconheçam nas histórias.”

Cada título sai por 3,80 a 10 reais na Editora Gráfica Heliópolis, e a tiragem mínima é de 50 livros. A cada dez vendidos já se paga a impressão. O acabamento e o design interno e de capa são criados em parceria com os próprios autores.

A transexual Júlia Bueno, de 30 anos, escreve poesia desde os 7. Psicóloga com especialização pelo campus Leste da Universidade de São Paulo, ela publicou Amor & Revolta, de versos doloridos como sentimentos traiçoeiros/ que me dão esperança/ e em segundos se tornam pesadelos/ pesadelos horríveis que me atormentam por agora/ pelo que ainda nem chegou. “A poesia é para dar um nome e um sentido para essa revolta que estava em mim e que não fosse por outra violência”, explica. Ela afirma que nunca sofreu tantas violências como nos últimos tempos, inclusive discriminatórias no ambiente de trabalho e até sexuais. Afirma ter se prostituído por três meses, para poder sobreviver. “A literatura é um lugar que podia escrever e não ser julgada.”

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