Cultura
Guimarães Rosa levado à periferia
Guel Arraes e Jorge Furtado transpõem o universo e a oralidade de ‘Grande Sertão’ para a contemporaneidade


Grande Sertão, em cartaz nos cinemas brasileiros desde a quinta-feira 6, une dois desejos do diretor Guel Arraes: tentar adaptar a monumental obra literária de João Guimarães Rosa e tratar dos conflitos entre a polícia e o crime organizado no que ele chama de “guerra urbana brasileira”, tornada um subgênero nos “filmes de favela” do cinema nacional no início dos anos 2000.
“Cidade de Deus tem o ponto de vista da comunidade. Tropa de Elite, o da polícia. Queríamos tentar fazer um filme que incluísse todas as perspectivas, incluindo a dos bandidos, e o tratamento épico dado pelo romance a essa figura do cangaceiro atormentado parece um caminho adequado”, afirmou o cineasta, em entrevista sobre o filme, realizada em São Paulo.
Trazendo os eventos do livro para uma comunidade periférica, o longa-metragem, em princípio, ensaia abordar de maneira frontal as complexidades da violência nesses territórios. No entanto, conforme a narrativa avança, temas sensíveis, como o luto das mães de crianças assassinadas pelo Estado, vão dando lugar a uma narrativa mais palatável sobre um romance vivido em meio ao enfrentamento de gangues – e o filme, assim, acaba por ter mais em comum com West Side Story do que com a tradição do realismo social.
Caio Blat e Luísa Arraes, como o casal principal Riobaldo e Diadorim, reprisam os papéis que interpretaram na montagem teatral de Grande Sertão: Veredas dirigida por Bia Lessa. A tensão entre os dois se dá pela atração mútua que Riobaldo não permite consumar porque Diadorim, nascido Diadorina, apresenta-se com uma expressão de gênero masculina – e fica ambíguo, no filme, se a personagem foi idealizada como um homem trans.
De qualquer forma, é uma representação que não deslegitima noções mais flexíveis de gênero, apesar da escolha infeliz de gravar o corpo nu da personagem após sua morte como uma forma de revelação dramática ao protagonista.
Além dos visuais ambiciosos que miram no mesmo maximalismo expressivo de Baz Luhrmann em Romeo + Juliet, o marcador estilístico mais proeminente são os diálogos. Assim como fizeram com a linguagem shakespeariana em Romance, de 2008, os corroteiristas Arraes e Jorge Furtado transportam a prosa sofisticada de Guimarães Rosa para a oralidade contemporânea sem destituí-la de sua personalidade original. •
Publicado na edição n° 1314 de CartaCapital, em 12 de junho de 2024.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.