Cultura

Guerra improvável, paz impossível

Filme mostra que o mundo parece pronto para absorver o choque de valores entre Ocidente e Oriente, mas não entre a periferia e o centro

É como se o mundo estivesse pronto para ser conectado, mas as classes sociais, não
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Passou praticamente batida a exibição, em São Paulo, do filme Amor e Dor, de Lou Ye. Inexplicável: por muito menos, filmes de menor expressão ganharam destaques, ensaios e condecorações em forma de estrelas nos principais guias da cidade.

A recepção apática talvez se dê pela semelhança com o filme Desejo e Perigo, do também chinês Ang Lee. Um fica parecendo um genérico do outro, apesar de um ser um filme de época e o outro, contemporâneo. Mais aclamado, Desejo e Perigo venceu o Festival de Veneza em 2007 e recebeu elogios da crítica especializada à época. Com todos os méritos. Em três horas, Lee transportou para um mesmo quarto/esconderijo a brutalidade e tensão de uma China subjugada pelos japoneses em plena Segunda Guerra. Paralelamente, destrinchava a relação entre ator e personagem por meio da espiã Wong Chia Chi (Tang Wei), orientada a seduzir um chefe de polícia japonês e atingir o coração do governo invasor. O contato físico é impiedoso: conforme se aproximam, entrelaçados sob todos os ângulos de filmagem possíveis e imagináveis, a personagem engole a espiã, colocando em jogo toda a farsa. O contato, afinal, era real.

A brutalidade das cenas é replicada em Amor e Dor, adaptação do romance do escritor Jie Liu-Falin, co-roteirista do filme. O título é autoexplicativo. As agressões físicas e verbais dão o tom do breve e intenso romance vivido entre Hua (Corinne Yam), uma estudante chinesa que busca em Paris a libertação do corpo e das ideias, e Matthieu (Tahar Rahim, ator de O Profeta), o jovem trabalhador braçal que a recebe numa cidade aparentemente sem ordem.

Há uma série de truques ao longo do filme. A começar pela câmera tremelicando na tela enquanto Hua passeia pelas ruas de Paris, a cidade-luz filmada quase sempre no breu ou sob nuvens – bem diferente das cenas gravadas em Pequim, onde até um pássaro preso na gaiola de um apartamento arejado parece exalar uma paz inexistente nos quartos claustrofóbicos da capital francesa. Ordem e liberdade parecem sobrepostos, mas em lugares invertidos.

Outro truque é a ideia da universalidade: preste atenção no toque do celular a tocar bem do seu lado enquanto lê este texto. É o mesmo som do aparelho da chinesa para se conectar com a França e com o seu país. Da mesma forma, a câmera muitas vezes se perde num caos urbano entrelaçado por estacas de feiras ambulantes – é preciso prolongar a cena para notar quando as placas estão inscritas em mandarim ou em francês.

A estrutura, parece dizer Lou Ye, é a mesma: a força de trabalho, a exploração, as pequenas brechas de poder entre as relações humanas, efêmeras e intensas, truncadas e dolorosas. Nada disso é patrimônio nacional, mas sim humano.

Por esse aspecto, enganou-se quem imaginava ver na tela uma reflexão sobre um mundo de línguas distintas, incomunicável e de valores relativos. Hua e Matthieu estão longe de se entender, apesar de falarem a mesma língua, o francês. A distância entre eles é basicamente social e não são as diferenças entre Ocidente e Oriente que criam as faíscas, mas a disparidade entre a intelectual estrangeira e o peão suburbano. Matthieu é rejeitado no circulo de Hua, formado por estudantes chineses tão intolerantes quanto os amigos e familiares broncos de Matthieu – que veem na postura libertária de Hua a brecha para todo tipo de violência contra ela.

Entre os brutamontes da periferia parisiense (do mundo?) e a afetação acadêmica (universal?) há mais quilômetros a serem percorridos do que entre Paris e Pequim. O choque de realidades é mais agudo que o choque cultural, e é ali que se manifestam todos os tipos de preconceitos e agressões.

É como se o mundo estivesse pronto para ser conectado, mas as classes sociais, não. Pelo contrário: o contato, neste caso, é ainda campo minado para embates e tensões.

Passou praticamente batida a exibição, em São Paulo, do filme Amor e Dor, de Lou Ye. Inexplicável: por muito menos, filmes de menor expressão ganharam destaques, ensaios e condecorações em forma de estrelas nos principais guias da cidade.

A recepção apática talvez se dê pela semelhança com o filme Desejo e Perigo, do também chinês Ang Lee. Um fica parecendo um genérico do outro, apesar de um ser um filme de época e o outro, contemporâneo. Mais aclamado, Desejo e Perigo venceu o Festival de Veneza em 2007 e recebeu elogios da crítica especializada à época. Com todos os méritos. Em três horas, Lee transportou para um mesmo quarto/esconderijo a brutalidade e tensão de uma China subjugada pelos japoneses em plena Segunda Guerra. Paralelamente, destrinchava a relação entre ator e personagem por meio da espiã Wong Chia Chi (Tang Wei), orientada a seduzir um chefe de polícia japonês e atingir o coração do governo invasor. O contato físico é impiedoso: conforme se aproximam, entrelaçados sob todos os ângulos de filmagem possíveis e imagináveis, a personagem engole a espiã, colocando em jogo toda a farsa. O contato, afinal, era real.

A brutalidade das cenas é replicada em Amor e Dor, adaptação do romance do escritor Jie Liu-Falin, co-roteirista do filme. O título é autoexplicativo. As agressões físicas e verbais dão o tom do breve e intenso romance vivido entre Hua (Corinne Yam), uma estudante chinesa que busca em Paris a libertação do corpo e das ideias, e Matthieu (Tahar Rahim, ator de O Profeta), o jovem trabalhador braçal que a recebe numa cidade aparentemente sem ordem.

Há uma série de truques ao longo do filme. A começar pela câmera tremelicando na tela enquanto Hua passeia pelas ruas de Paris, a cidade-luz filmada quase sempre no breu ou sob nuvens – bem diferente das cenas gravadas em Pequim, onde até um pássaro preso na gaiola de um apartamento arejado parece exalar uma paz inexistente nos quartos claustrofóbicos da capital francesa. Ordem e liberdade parecem sobrepostos, mas em lugares invertidos.

Outro truque é a ideia da universalidade: preste atenção no toque do celular a tocar bem do seu lado enquanto lê este texto. É o mesmo som do aparelho da chinesa para se conectar com a França e com o seu país. Da mesma forma, a câmera muitas vezes se perde num caos urbano entrelaçado por estacas de feiras ambulantes – é preciso prolongar a cena para notar quando as placas estão inscritas em mandarim ou em francês.

A estrutura, parece dizer Lou Ye, é a mesma: a força de trabalho, a exploração, as pequenas brechas de poder entre as relações humanas, efêmeras e intensas, truncadas e dolorosas. Nada disso é patrimônio nacional, mas sim humano.

Por esse aspecto, enganou-se quem imaginava ver na tela uma reflexão sobre um mundo de línguas distintas, incomunicável e de valores relativos. Hua e Matthieu estão longe de se entender, apesar de falarem a mesma língua, o francês. A distância entre eles é basicamente social e não são as diferenças entre Ocidente e Oriente que criam as faíscas, mas a disparidade entre a intelectual estrangeira e o peão suburbano. Matthieu é rejeitado no circulo de Hua, formado por estudantes chineses tão intolerantes quanto os amigos e familiares broncos de Matthieu – que veem na postura libertária de Hua a brecha para todo tipo de violência contra ela.

Entre os brutamontes da periferia parisiense (do mundo?) e a afetação acadêmica (universal?) há mais quilômetros a serem percorridos do que entre Paris e Pequim. O choque de realidades é mais agudo que o choque cultural, e é ali que se manifestam todos os tipos de preconceitos e agressões.

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