Cultura

Grupos de teatro da periferia de SP redescobrem o público em seus bairros

Com o ‘Centro’ fechado, a solução foi aprofundar um movimento que vinha desde antes da pandemia

Territórios. A montagem de CÁRCERE comemora os 22 anos da Cia. de Teatro Heliópolis, cuja sede, no Ipiranga, é vizinha à maior favela de São Paulo - Imagem: Weslei Barba
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Quando a pandemia paralisou o setor cultural, há pouco mais de dois anos, o teatro foi uma das manifestações que mais fortemente acusaram o golpe. Como uma linguagem ancorada na concomitância de tempo e espaço entre artistas e público poderia prescindir do seu DNA? Grandes produções com generosos patrocínios (e estrelas bancadas por seus salários da tevê) tinham algum fôlego para atravessar a tormenta. Não era o caso de companhias de caminhada longa, mas pouco midiatizada, como muitas das radicadas na periferia de São Paulo.

Com o “Centro” fechado, a solução foi aprofundar um movimento que vinha desde antes da pandemia: o de olhar para os lados, ir ao encontro de outros grupos das franjas da cidade e do público que vive nessas regiões, e que às vezes acha que o teatro não é (também) o seu lugar. E fizeram isso a despeito de obstáculos vários, entre eles, a intermitência do acesso à internet – o único palco possível no auge da pandemia – nas áreas mais remotas.

Nesses dois anos de abre e fecha, intensificou-se a colaboração entre coletivos de trajetória intimamente ligada aos territórios em que funcionam suas sedes. Quem tinha um pouco mais de estrutura chamava trupes parceiras para conversas e saraus online ou mesmo para dividir o cachê originário de transmissões ao vivo ou cenas gravadas por encomenda de instituições como o Sesc.

Nessa linha, a Companhia Teatro da Investigação (CTI), fundada há 19 anos e com sede na Vila Ré, Zona Leste da cidade, há cinco, promoveu edições dos projetos Marca da Zona Leste, vitrine online para 20 artistas de teatro, dança e música, e Receba, centrado em coletivos do bairro onde está a sede do grupo e com programação que incluía slams e lançamentos de livros.

Agora, a CTI está à frente do Teatro em Trânsito, uma circulação de espetáculos de oito grupos periféricos, sobretudo das regiões Sul e Leste da capital paulista, por praças públicas e sedes das companhias participantes.

Nas periferias, a plateia não conseguia ver as peças online por causa do wi-fi

“Na programação online, sentimos no começo um acolhimento da comunidade. Mas, depois, a interação virtual ficou saturada. As primeiras transmissões chegavam a ter 3 mil espectadores. No fim de 2020, eram algumas dezenas”, conta Eduardo Brisa, diretor e dramaturgo do grupo. “As pessoas, simplesmente, não conseguiam assistir, por causa do plano de dados (do celular), do wi-fi.”

Adriano Mauriz, ator e cofundador do grupo Pombas Urbanas, em atividade desde 1989, faz o mesmo diagnóstico. “Dei uma oficina de palhaço online em que havia gente de outros estados, até de outros países. Mas ninguém da Cidade Tiradentes (onde a trupe está abrigada desde 2004). Antes da pandemia, chegávamos a ter 300 alunos por semestre nas nossas oficinas. Eram quase todos daqui. Perdemos o contato com eles. É difícil construir esse vínculo. Mas quebrá-lo é facílimo.” Em março, o grupo estreou, na própria sede, Florilégio.

Que o diga Gabriela Cerqueira, atriz e cofundadora do Rosas Periféricas, que participou do Teatro em Trânsito em março e circula até junho com o Ladeira das Crianças – Teatro Funk por parques, praças, escolas públicas e centros culturais da periferia – a cada mês, o foco é em uma região.

“Somos quase todos do Parque São Rafael (Zona Leste), mas nos formamos em instituições da região central, como a Faculdade Paulista de Artes e o Teatro Escola Macunaíma. Então, quando chegamos para nos apresentar, as pessoas­ não apareceram”, diz. Foi preciso que o quinteto abrisse uma sede no bairro, em 2014, para entender as especificidades da plateia vizinha, lembra Gabriela.

“A gente viu que precisava fazer um trabalho de formação de público, que tinha de chamar outras companhias para oferecermos mais opções às pessoas. Aprendemos a fazer sorteio de livros no final da peça, usar bastante música e divulgar no boca a boca uma hora antes, em vez de só apostar em redes sociais”, diz ela. “Hoje, as pessoas têm orgulho de dizer que o grupo é do bairro, vêm como estão, de chinelo, com a roupa do dia a dia, nos emprestam a luz para nos apresentarmos na praça.”

A implantação dos coletivos nos seus territórios tornou-se possível a partir do começo dos anos 2000 por uma série de leis e programas de financiamento, sobretudo no âmbito municipal. O carro-chefe é a Lei Municipal de Fomento ao Teatro, de 2002, mas o Programa para Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), de 2003, e o Programa de Fomento à Cultura da Periferia (multidisciplinar), de 2016, também serviram de trampolim para essa capilarização.

Circuitos. Florilégio está em cartaz na Cidade Tiradentes. Ladeira das Crianças é apresentado em escolas, praças e centros culturais das periferias – Imagem: Andressa Santos e Ricardo Avella

“Aconteceu uma mudança de paradigma”, afirma Mauriz, do Pombas Urbanas. “Nos anos 1970, havia muito uma ideia de ‘levar o teatro ao povo’, ou seja, do Centro para as margens. A partir dos anos 1990, não mais. Percebemos que somos o povo. Moramos aqui e reivindicamos a nossa expressão.”

A Cia. de Teatro Heliópolis, 22 anos de estrada e 12 espetáculos no currículo, põe em prática essa convicção. Até junho, promove uma temporada de três meses do espetáculo CÁRCERE ou Por que as Mulheres Viram Búfalos, em sua sede, no Ipiranga, ao lado do bairro que lhe dá nome e que abriga a maior favela de São Paulo.

“Fazer temporada longa é complexo, caro, uma coisa do passado”, diz Miguel Rocha, diretor e cofundador da trupe. “Mas precisamos compartilhar nossa pesquisa com o público da região. Não faz sentido de outro jeito.” Embora tenha sido criado muito tempo atrás, o grupo de Heliópolis só foi “descoberto” pelo “Centro” em 2019, quando fez uma temporada no Sesc Belenzinho. Dez anos antes, tinha feito meia dúzia de apresentações no Tusp, localizado em Higienópolis.

“Isso diz muito sobre as instituições culturais. É um teatro que não interessa à classe média (CÁRCERE narra a história de duas irmãs às voltas com a prisão de um filho e de um ex-companheiro)”, reflete Rocha. “Mas o Centro não determina o nosso trabalho. É claro que queremos estar nesses espaços. Isso é poder, não podemos nos enganar. Eles nos fortalecem, mas não dependemos deles.”

“Os críticos não cruzam a ponte”, observa Gabriela Siqueira, do grupo Rosas Periféricas

Para Mauriz, trata-se de fazer com que as pessoas se sintam contempladas e prestigiadas. “Estar na periferia e se apresentar regularmente aqui mostra aos moradores que eles não estão fora do circuito cultural, que são parte dele. É importante essa mirada para os corpos e os perrengues periféricos (na dramaturgia dos espetáculos e na programação educativa dos espaços), para que o público daqui se reconheça.”

Gabriela diz que o Centro não é mais sinônimo de chancela, mas faz uma ressalva: com raras exceções, só é indicado a prêmio quem passa por lá. “Os críticos não cruzam a ponte.” Rocha, da Cia. ­Heliópolis, endossa essa fala: “O ­livro que comemora os nossos 20 anos é uma amostra disso. Foi dificílimo achar críticas do nosso trabalho”.

Apesar do abismo, pondera Mauriz, vale fazer incursões ao Centro para “dar visibilidade à Cidade Tiradentes, ajudar a desmontar estereótipos”. Brisa diz que o fato de um grupo periférico ter passagens por instituições mais midiatizadas, como grandes festivais ou Sesc, Itaú Cultural e teatros da prefeitura, pode contar pontos na avaliação de um patrocínio via edital.

O próprio Rocha reconhece a importância do apelo amplo daquilo que sobe ao palco. “Queremos construir uma poética que vá além do nosso território. Queremos pertencer à cidade, dialogar com ela”, diz. “No fim das contas, o que mostramos não são temas que digam respeito apenas a quem vive em Heliópolis. É importante que outras pessoas possam nos ouvir, nos entender.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1203 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Encontros à margem”

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