Cultura
“Gravar para tocar onde?”
Zeca Pagodinho celebra 40 anos de carreira com uma turnê pelo País e um olhar crítico para a indústria musical


O show de ingressos esgotados, no último fim de semana, em São Paulo, começa com imagens de sambistas históricos sendo exibidas no grandioso cenário. A última sequência de fotos é de Beth Carvalho (1946-2019).
Com essa cena ao fundo, surge no palco Zeca Pagodinho para abrir o repertório com Camarão Que Dorme a Onda Leva, parceria dele com Beto Sem Braço (1940-1993) e Arlindo Cruz. Foi a primeira música sua que Beth gravou, em 1983.
O samba traz à memória a quadra do Cacique de Ramos, na Zona Norte do Rio, onde, na virada dos anos 1970 para os 1980, se formou um grupo de talentosos sambistas jamais visto desde que a Turma do Estácio se reuniu, no fim da década de 1920, para fundar o samba moderno.
A roda do Cacique introduziu novos instrumentos no samba, como tantã, repique de mão e o banjo, este inserido por Almir Guineto (1946-2017), próximo de Zeca, que o chamava de “professor”. Beth Carvalho era frequentadora assídua do local e lá garimpava novas composições para seus trabalhos. Zeca Pagodinho era outro deles. As rodas de samba da Velha Guarda da Portela eram outro ponto de parada do artista em suas andanças pelo Rio.
Esses encontros estão muito presentes na turnê do álbum audiovisual Zeca Pagodinho – 40 Anos Ao Vivo, gravado no Engenhão, no Rio de Janeiro, no dia 4 de fevereiro, data em que o músico completou 65 anos. A turnê seguirá ainda por várias cidades do País.
“Antes saía um disco, e a rádio dizia para a gravadora: ‘Não mandaram o disco?’ Agora tem que ir lá, implorar para tocar”
Nesta entrevista exclusiva a CartaCapital, feita no bar que leva seu nome na Barra da Tijuca, onde mora no Rio de Janeiro, o sambista conta as suas andanças antes de se transformar num fenômeno da música; explica os motivos de ter criado um instituto em Xerém, na Baixada Fluminense, que já atendeu mais de 2 mil pessoas da comunidade; critica a falta de acesso às rádios; e se diz desanimado em lançar novas músicas.
CartaCapital: Você tem saudade da época do Cacique de Ramos?
Zeca Pagodinho: Aquele Cacique era uma coisa! Quem viu, viu. Quem não viu, não vai ver nada igual. Aquilo era uma religião, como dizia (o compositor) Luiz Carlos da Vila (1949-2008). A gente ia para lá como se fôssemos a uma missa: cada um com samba novo para mostrar. E era cada samba, que nego chorava. E botava cerveja na mesa. Cada um que se achava dentro daquele samba, botava cerveja na mesa. Às vezes, penso: como a gente bebia tanto? Um dizia: “Pô, samba foda! Canta de novo. Vou botar mais cerveja”. Era assim que funcionava. Tenho muita saudade. Ali no Cacique era uma roda que Nossa Senhora…
CC: Qual a importância de Beth Carvalho para a sua geração?
ZP: Beth deu aquela alavanca. Assim como eu, Arlindo (Cruz), grupo Fundo de Quintal, Jorge Aragão, Sombrinha, Luiz Carlos da Vila, Almir Guineto, tudo cria da Beth. Cada um com samba novo para mostrar para alguém, no caso a Beth Carvalho, e para cantar mesmo na nossa roda (do Cacique de Ramos).
CC: Você sempre teve uma relação muito próxima com Almir Guineto. Por quê?
ZP: Ele era o nosso professor. Não era qualquer um que chegava perto do Almir. Ele era difícil de lidar. Daí comecei a fazer música com ele, passei a ser um cambono dele. Quando cheguei em São Paulo (no início dos anos 1980), ele me colocou em seu apartamento já com uma mulher e tudo dentro. Depois me levou para a Serra da Cantareira, na casa de um polícia malandro, um brucutu, e aí fiquei assim casado, entre aspas, com a sobrinha dele. Fizemos (o samba) Lama nas Ruas. Almir era meu fã. Ele falava: “Jessé, você é um gênio”.
Rodas de samba. A quadra do Cacique de Ramos, na Zona Norte do Rio, foi um dos espaços onde Zeca se formou – Imagem: Michelle Beff/G.R. Cacique de Ramos
CC: Sua geração mudou mesmo o samba?
ZP: A Velha Guarda (da Portela) achava que tínhamos mudado o samba. O Cacique veio com outra levada. Veio com banjo, tantã. E essa nova garotada é outra levada também. O samba fez uma mudança grande, explodiu. Porque depois veio o pagode. Pagode, antes, era o pagode do Arlindo, pagode do Cacique, pagode da Tia Doca – era uma reunião de quem cantava samba, não era gênero musical. Só depois virou gênero.
CC: E essa relação com a Velha Guarda da Portela?
ZP: Andei muito com eles (no mesmo período em que frequentava o Cacique de Ramos). Todo disco meu tinha uma faixa do Monarco (1933-2021) e uma outra de pot-pourri da Velha Guarda. Ia nos ensaios deles numa vila onde o Argemiro (1923-2003) morava. Era cada samba! E eram coisas do dia a dia, coisas engraçadas. Cada um tinha um gênero. O Casquinha (1922-2018) era do sincopado; Manaceia (1921-1995), do samba de amor; seu Alberto Lonato (1909-1998) era o poeta do amor.
CC: Sua primeira composição gravada, Dez Mandamentos (com Arlindo Cruz), no disco de Walmir Lima, em 1981, nunca foi registrada por você. Não gostaria de gravá-la?
ZP: Ando desanimado. Não tem mais rádio, não tem um programa que toque samba. A gente já reclamava, mas tinha a Rádio Tropical, a Rádio Nacional, com Rubem Confete e Arlênio Lívio (1942-2003). O Adelzon Alves (também na Rádio Nacional) era na madrugada. Não escuto mais rádio. Ninguém escuta. Antes saía um disco, e a rádio dizia para a gravadora: “Porra, não mandaram o disco?” Agora tem que ir lá, implorar para tocar. Dizem que tem até que pagar. Estou fora. A gente já reclamava há 40 anos, agora então…
“Pagode, antes, era uma reunião de quem cantava samba, não era gênero musical. Só depois virou gênero”
CC: Mas, se não fosse você no samba…
ZP: Pois é, a gente tenta. Estou, por exemplo, querendo saber por que samba só toca aos sábados e domingos. A gente não toca em rádio nenhuma durante a semana. (Zeca Pagodinho refere-se ao Samba Social Clube, programa realizado nos fins de semana, hoje no ar na Super Rádio Tupi.)
CC: Você é devoto de São Jorge e se emociona quando canta a canção Ogum, complementada com a oração de São Jorge. Isso é visível principalmente na gravação com a participação de Jorge Ben Jor (no DVD Uma Prova de Amor, de 2009). O que acontece?
ZP: No estúdio, Ben Jor teve uma crise de choro, eu também, o (produtor musical) Rildo (Hora) e o Arlindo também. Lembro de tudo! Nessa gravação, eu estava com meu pai internado, minha irmã internada, tinha outro problema de família. Não sei como consegui chegar ali. Ben Jor é muito devoto de São Jorge.
CC: Como estão os projetos de música do Instituto Zeca Pagodinho em Xerém?
ZP: Eu queria estudar música, e não pude. Comecei a trabalhar com 14 anos. Acho que muita criança tem esse desejo e não consegue. O Instituto já mandou quatro alunos para os Estados Unidos. Mas não dá dinheiro. Tinha um menino bom de violino, mas o pai tirou porque tinha que trabalhar. O melhor que tinha lá estudava piano e violão, foi até para Viena, mas o pai também tirou para trabalhar com ele. Eis a questão. Música é bom. Não é só para ser profissional. Música é remédio, cura. Fez muito bem para mim.
CC: Você tem vontade de gravar outras músicas?
ZP: Tenho, mas para tocar onde? •
Publicado na edição n° 1317 de CartaCapital, em 03 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘“Gravar para tocar onde?” ‘
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