Cultura

Gonzaga de pai para filhos

Do forró universitário ao “pé de serra” em redutos nordestinos, os herdeiros de Luiz Gonzaga, que completa cem anos amanhã, se espalham pelo País

Apresentação em reduto nordetino em SP
Apoie Siga-nos no

Noite quente de quarta-feira na capital paulista. Cerca de 500 pessoas disputam um espaço na pista do Canto da Ema, tradicional casa de forró localizada nas proximidades do Largo da Batata, reduto da cultura nordestina na zona oeste da paulicéia.

 

Fundado no final do século XX por produtores musicais paulistas apaixonados pelos ritmos do norte, o estabelecimento não teve o privilégio de receber o Rei do Baião. Mas, em compensação, praticamente todos os seus herdeiros apresentaram-se à nova geração da boemia local nos últimos 15 anos.

No palco, em formação fiel à tradição do Araripe, o trio Virgulino – Enok (sanfona), Adelmo Nascimento (triângulo) e Roberto Pinheiro (zabumba) – relembra Sanfona Sentida, clássico de Dominguinhos e Anastácia, gravado por Gonzagão na década de 70. Referência para toda uma geração de jovens músicos populares, os três pernambucanos estão na estrada desde 1980 e fazem parte da história do forró.

No chão, sob retratos de Gonzaga e de artistas como Dominguinhos, dezenas de pares de jovens entre 18 e 30 e poucos anos trocam pernas. Hoje em dia é quase impossível rotular o público: já chamado de “universitário”, o movimento democratizou-se rapidamente e ganhou adeptos, sobretudo na juventude de origem nordestina da periferia.

Fácil mesmo é reconhecer os frequentadores pela roupa. Ou pela simplicidade da roupa. Na maioria dos homens, bermudas e camisetas, combinação incomum na noite da cidade. Alguns com sandálias de couro, outros de chinelo, a maioria com confortáveis tênis esportivos. As meninas dançam com trajes leves, saias rodadas, vestidos e as tradicionalíssimas sandálias “chinezinhas”.

Tudo começou nos primeiros anos da década de 90, quando estudantes das principais universidades e escolas da cidade redescobriram o forró. O ritmo era genuinamente brasileiro e dançava-se em par. A política neoliberal batia à porta e as frentes de resistência cultural davam as caras.

Para Paulo Rosa, produtor pioneiro e proprietário do Canto da Ema, o movimento nasceu e cresceu espontaneamente, à margem do eixo do mercado, e só ganhou espaço na grande mídia depois de consolidado. Rosa afirma que o estereótipo de “universitário” se deve ao preconceito com o ritmo e com a cultura nordestina, principalmente na capital paulista. “Eles não esperavam tamanho barulho e encontraram uma forma de elitizar o forró. Como a vanguarda do movimento vinha principalmente da USP, da PUC e do Mackenzie, ficou fácil a associação”, explica.

Magno de Souza, produtor e sócio do Canto da Ema, conta como o movimento foi resgatado a partir dos anos 1990. “Eu e o Paulinho (Rosa) aprendemos a gostar de forró separadamente e acabamos nos conhecendo na noite. Então resolvemos tocar os discos que descobrimos nas festas que produzíamos e percebemos boa aceitação do público. Com essa resposta positiva, produzimos em 95 no extinto Projeto Equilíbrio (famoso centro cultural da região de Pinheiros nos anos 90) uma noite de forró. A coisa toda ganhou corpo gradativamente, cresceu até explodir e superou todas as expectativas”, relembra.

Impulsionada pela dupla, que rapidamente ganhou o reforço de produtores e estudantes agitadores, a “segunda onda” espalhou-se pelo país. Do meio para o fim da década, casas de forró “pé de serra” multiplicaram-se nos redutos boêmios das grandes cidades do eixo sul-sudeste. Muitas bandas novas despontaram. Em São Paulo, além do Projeto Equilíbrio, o Remelexo e o KVA, que encerrou suas atividades em 2004, reuniam milhares de pessoas por semana. No Rio, o Malagueta apimentava a “night” dos cariocas. Em Belo Horizonte, as noites de forró no Lapa Multishow pegavam fogo.

“Era a época dos Fóruns de Porto Alegre, do combate à ALCA e ao projeto neoliberal. Grande parte do público e dos músicos do forró estavam de certa forma engajados e, no meio dessa efervescência, organizamos o Forró Social Mundial no KVA. Acontecia aos domingos e a verba arrecadada ia diretamente para a organização do Fórum. Lembro que os músicos ligavam e se ofereciam para tocar de graça no evento. Ficava cada vez mais claro que estávamos diante de algo muito maior do que um movimento de resgate da música popular brasileira”, recorda Tita Dias, ex-produtora do KVA, onde também funcionava um centro cultural.

Constituídos por jovens de classe média em parceria com experientes sanfoneiros nordestinos, grupos como o Falamansa e o Rastapé apareceram e passaram a tocar nas rádios e nos programas de auditório da tevê. Os repertórios, recheados de músicas próprias, incluíam sucessos de Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Composições como Asas, do Falamansa, e Amar Até, do Rastapé, tornaram-se hits. Em poucos anos, o ritmo saltou do “underground ao mainstream” e o público universitário passou a ser minoria sob os palcos.

Músicos esquecidos que passavam dificuldade financeira – a maioria nos antigos trios de forró “pé de serra” – retornaram aos palcos, ganharam novos fãs e melhoraram de vida. Músicas esquecidas de ícones como Humberto Teixeira, João do Vale e Dominguinhos voltaram às vitrolas dos DJs. Pela segunda vez na história do Brasil, o Baião colocava comida na mesa de muita gente.

Compositor e pesquisador da cultura popular brasileira, o violeiro Miltinho Ediberto é um dos principais expoentes do “forró universitário”. Gravado ao vivo no KVA em 1999, o segundo álbum (Como Alcançar uma Estrela) de sua carreira marcou época. Segundo o folclorista, o valor do movimento está na conservação das raízes e tradições da cultura popular brasileira.

“Infelizmente, se escuta pouco forró ‘pé de serra’ no nordeste. Com exceção de alguns redutos, predomina atualmente um outro tipo de forró, caracterizado principalmente pelo arranjo eletrônico e pelo cunho comercial. Nesse contexto, o forró chamado de ‘universitário’ aparece como imprescindível e representa um tipo de resistência necessária”, conta Ediberto.

Durante o século XXI, o movimento entrou em refluxo, mas está longe de acabar. Apenas saiu do foco da indústria cultural, na qual tudo parece efêmero e sem autonomia artística. Fato é que o “forró universitário” resiste e, mesmo longe dos holofotes, conta com um público plural, que se renova a cada ano. “Abrimos o Canto da Ema de quarta a domingo. Na média, 500 pessoas passam por nossas bilheterias por dia”, informa Rosa. Todos em busca do ritmo nordestino, que um dia o Rei do Baião ajudou a espalhar pelo Sul.

Principal referência de toda essa agitação, Gonzaga faz parte do seleto grupo de artistas reconhecidos e admirados por gerações que não tiveram a oportunidade de ir a um de seus shows. Sua obra, mais que diversão, oferece aos jovens brasileiros uma frente de defesa da identidade cultural nacional, ameaçada constantemente pela tentativa de implantação da monocultura globalizada.

Noite quente de quarta-feira na capital paulista. Cerca de 500 pessoas disputam um espaço na pista do Canto da Ema, tradicional casa de forró localizada nas proximidades do Largo da Batata, reduto da cultura nordestina na zona oeste da paulicéia.

 

Fundado no final do século XX por produtores musicais paulistas apaixonados pelos ritmos do norte, o estabelecimento não teve o privilégio de receber o Rei do Baião. Mas, em compensação, praticamente todos os seus herdeiros apresentaram-se à nova geração da boemia local nos últimos 15 anos.

No palco, em formação fiel à tradição do Araripe, o trio Virgulino – Enok (sanfona), Adelmo Nascimento (triângulo) e Roberto Pinheiro (zabumba) – relembra Sanfona Sentida, clássico de Dominguinhos e Anastácia, gravado por Gonzagão na década de 70. Referência para toda uma geração de jovens músicos populares, os três pernambucanos estão na estrada desde 1980 e fazem parte da história do forró.

No chão, sob retratos de Gonzaga e de artistas como Dominguinhos, dezenas de pares de jovens entre 18 e 30 e poucos anos trocam pernas. Hoje em dia é quase impossível rotular o público: já chamado de “universitário”, o movimento democratizou-se rapidamente e ganhou adeptos, sobretudo na juventude de origem nordestina da periferia.

Fácil mesmo é reconhecer os frequentadores pela roupa. Ou pela simplicidade da roupa. Na maioria dos homens, bermudas e camisetas, combinação incomum na noite da cidade. Alguns com sandálias de couro, outros de chinelo, a maioria com confortáveis tênis esportivos. As meninas dançam com trajes leves, saias rodadas, vestidos e as tradicionalíssimas sandálias “chinezinhas”.

Tudo começou nos primeiros anos da década de 90, quando estudantes das principais universidades e escolas da cidade redescobriram o forró. O ritmo era genuinamente brasileiro e dançava-se em par. A política neoliberal batia à porta e as frentes de resistência cultural davam as caras.

Para Paulo Rosa, produtor pioneiro e proprietário do Canto da Ema, o movimento nasceu e cresceu espontaneamente, à margem do eixo do mercado, e só ganhou espaço na grande mídia depois de consolidado. Rosa afirma que o estereótipo de “universitário” se deve ao preconceito com o ritmo e com a cultura nordestina, principalmente na capital paulista. “Eles não esperavam tamanho barulho e encontraram uma forma de elitizar o forró. Como a vanguarda do movimento vinha principalmente da USP, da PUC e do Mackenzie, ficou fácil a associação”, explica.

Magno de Souza, produtor e sócio do Canto da Ema, conta como o movimento foi resgatado a partir dos anos 1990. “Eu e o Paulinho (Rosa) aprendemos a gostar de forró separadamente e acabamos nos conhecendo na noite. Então resolvemos tocar os discos que descobrimos nas festas que produzíamos e percebemos boa aceitação do público. Com essa resposta positiva, produzimos em 95 no extinto Projeto Equilíbrio (famoso centro cultural da região de Pinheiros nos anos 90) uma noite de forró. A coisa toda ganhou corpo gradativamente, cresceu até explodir e superou todas as expectativas”, relembra.

Impulsionada pela dupla, que rapidamente ganhou o reforço de produtores e estudantes agitadores, a “segunda onda” espalhou-se pelo país. Do meio para o fim da década, casas de forró “pé de serra” multiplicaram-se nos redutos boêmios das grandes cidades do eixo sul-sudeste. Muitas bandas novas despontaram. Em São Paulo, além do Projeto Equilíbrio, o Remelexo e o KVA, que encerrou suas atividades em 2004, reuniam milhares de pessoas por semana. No Rio, o Malagueta apimentava a “night” dos cariocas. Em Belo Horizonte, as noites de forró no Lapa Multishow pegavam fogo.

“Era a época dos Fóruns de Porto Alegre, do combate à ALCA e ao projeto neoliberal. Grande parte do público e dos músicos do forró estavam de certa forma engajados e, no meio dessa efervescência, organizamos o Forró Social Mundial no KVA. Acontecia aos domingos e a verba arrecadada ia diretamente para a organização do Fórum. Lembro que os músicos ligavam e se ofereciam para tocar de graça no evento. Ficava cada vez mais claro que estávamos diante de algo muito maior do que um movimento de resgate da música popular brasileira”, recorda Tita Dias, ex-produtora do KVA, onde também funcionava um centro cultural.

Constituídos por jovens de classe média em parceria com experientes sanfoneiros nordestinos, grupos como o Falamansa e o Rastapé apareceram e passaram a tocar nas rádios e nos programas de auditório da tevê. Os repertórios, recheados de músicas próprias, incluíam sucessos de Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Composições como Asas, do Falamansa, e Amar Até, do Rastapé, tornaram-se hits. Em poucos anos, o ritmo saltou do “underground ao mainstream” e o público universitário passou a ser minoria sob os palcos.

Músicos esquecidos que passavam dificuldade financeira – a maioria nos antigos trios de forró “pé de serra” – retornaram aos palcos, ganharam novos fãs e melhoraram de vida. Músicas esquecidas de ícones como Humberto Teixeira, João do Vale e Dominguinhos voltaram às vitrolas dos DJs. Pela segunda vez na história do Brasil, o Baião colocava comida na mesa de muita gente.

Compositor e pesquisador da cultura popular brasileira, o violeiro Miltinho Ediberto é um dos principais expoentes do “forró universitário”. Gravado ao vivo no KVA em 1999, o segundo álbum (Como Alcançar uma Estrela) de sua carreira marcou época. Segundo o folclorista, o valor do movimento está na conservação das raízes e tradições da cultura popular brasileira.

“Infelizmente, se escuta pouco forró ‘pé de serra’ no nordeste. Com exceção de alguns redutos, predomina atualmente um outro tipo de forró, caracterizado principalmente pelo arranjo eletrônico e pelo cunho comercial. Nesse contexto, o forró chamado de ‘universitário’ aparece como imprescindível e representa um tipo de resistência necessária”, conta Ediberto.

Durante o século XXI, o movimento entrou em refluxo, mas está longe de acabar. Apenas saiu do foco da indústria cultural, na qual tudo parece efêmero e sem autonomia artística. Fato é que o “forró universitário” resiste e, mesmo longe dos holofotes, conta com um público plural, que se renova a cada ano. “Abrimos o Canto da Ema de quarta a domingo. Na média, 500 pessoas passam por nossas bilheterias por dia”, informa Rosa. Todos em busca do ritmo nordestino, que um dia o Rei do Baião ajudou a espalhar pelo Sul.

Principal referência de toda essa agitação, Gonzaga faz parte do seleto grupo de artistas reconhecidos e admirados por gerações que não tiveram a oportunidade de ir a um de seus shows. Sua obra, mais que diversão, oferece aos jovens brasileiros uma frente de defesa da identidade cultural nacional, ameaçada constantemente pela tentativa de implantação da monocultura globalizada.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo