Cultura

Frívola Kahlo: a imagem para além da arte

[vc_row][vc_column][vc_column_text] Museu Victoria & Albert, de Londres, materializa a convicção de que Frida é muito mais um empenhado produto da moda do que gênio dos pincéis [/vc_column_text][vc_empty_space][vc_column_text]O museu que afirma ser o melhor do mundo em arte e design vai colocar Frida Kahlo no seu devido lugar: o […]

Capa de Vogue, em 1937. Hoje, a Frida fashion continua prevalecendo (Foto: Nicholas Muray/Photo Archives)
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Museu Victoria & Albert, de Londres, materializa a convicção de que Frida é muito mais um empenhado produto da moda do que gênio dos pincéis

[/vc_column_text][vc_empty_space][vc_column_text]O museu que afirma ser o melhor do mundo em arte e design vai colocar Frida Kahlo no seu devido lugar: o de ícone fashion. O Victoria & Albert de Londres materializa, assim, a partir de junho, a convicção bastante justificada de que Frida Kahlo é muito mais um empenhado produto da moda, e de moda, do que um gênio definitivo dos pincéis e da composição. Seja como for, sua posteridade está garantida, ainda que não exatamente no panteão em que gostariam de vê-la os ativistas e, em especial, as ativistas de seu considerável fã-clube.

A célebre mexicana de Coyoacán que namorou Diego Rivera e flertou com Leon Trotski – talvez simultaneamente – cultivava uma personalidade vulcânica no corpo fragilizado pela doença e sua filiação ao credo do surrealismo, via André Breton, encaminhou um prestígio internacional semelhante ao que a escola – com Salvador DalíJoan MiróMax ErnstRené Magritte – desfrutou nos anos 30 e 40.

O trotskista Breton se refugiara no México em 1938, pressentindo a guerra na Europa, e logo o poeta de Nadja iria seduzir toda a intelectualidade local. Mas Frida rejeitava a filiação.

“Nunca pintei sonhos. Pinto a minha própria realidade”, dizia. Surreal realidade, a dela.

Assim como os artistas da escola que desdenhou, Frida encarnou a contradição de ser uma personagem mais fascinante, provocadora e multifacetada do que sua própria obra. Foi uma mulher livre, libertária e liberada numa nação de machos sufocantes e bigodudos, os quais, no entanto, se comportaram diante daquele patrimônio artístico nacional com uma tolerância que os atuais agroboys de Bagé não teriam (estes, com certeza, teriam queimado Frida como bruxa).

Com mandingas de fêmea que busca no figurino uma linguagem tão significativa quanto a das telas, ou até mais, Frida Kahlo foi construindo caprichosamente sua personalidade e esse processo é que a mostra do Victoria & Albert, a mais completa fora do México, busca reconstituir, de forma a – como aposta a cocuradora Claire Wilcox – entender por que a pintora do buço assombreado acabou se tornando “símbolo do feminismo e da contracultura”.

A mostra vai descer aos detalhes de tão minuciosa construção figurativa. Esse mergulho na intimidade inclui, para se ter uma ideia, o lápis da marca Ebony, ainda guardado no estojo original, com o qual Frida juntava, como se fossem uma só, em artifício coquete, as suas antológicas sobrancelhas. Outro traço recorrente de seus múltiplos autorretratos é o carmim de seus lábios.

O batom vintage da Revlon, fazendo pendant com o esmalte vermelho, acentuava o efeito almejado.

No figurino sempre multicolorido, a pintora revestia-se de uma persona que proclamava liberdade, mas respeitava a tradição, coreografando uma atmosfera cultural profunda que, ao primeiro olhar, já gritava: isto é México! Por meio século, os inconfundíveis looks de Frida Kahlo, assim como suas joias, seus cosméticos, suas cartas e até seus medicamentos, ficaram recolhidos, por decisão de Diego Rivera, na Casa Azul, de Coyoacán, nas proximidades da capital, onde Frida nasceu e morreu.

Só em 2004 vieram a público, no que passou a ser o Museu Frida Kahlo. Estarão, a partir de julho, em Londres, inclusive seus colares pré-colombianos, 22 feéricos trajes à moda tehuana, de raiz zatopeca, e equipamentos protéticos que suas progressivas limitações físicas foram obrigando-a a usar.

A prótese que passou a usar depois de ter a perna amputada foi decorada ao estilo Kahlo

Como o pai dela, Guillermo Kahlo, nascido na Alemanha e naturalizado mexicano, era fotógrafo, imagens de Frida menina é que não faltam no acervo agora exposto. Aos 18 anos, veio o trauma de um desastre de ônibus quase fatal que a manteve longas temporadas presa ao leito. Nem por isso o casal Frida-Diego se retirou do convívio social, ao contrário, administrava un salón por onde passavam intelectuais locais e estrangeiros e pregoeiros da revolução, como Trotski, que tentou em vão escapar da vingança de Stalin refugiando-se no distante México. O agente soviético Ramón Mercader o assassinou em 1940.

O cativeiro no leito decretou o principal tema das pinturas de Frida: ela mesma. O espelho passou a ser para ela uma ferramenta complementar a suas tintas e seus pincéis e os autorretratos foram se sucedendo, com uma frequência disciplinada que compensava os limites da vida pessoal. O que poderia ser entendido como um exercício rebarbativo de vaidade trazia momentos de deboche autoinfligido, no buço quase masculino, nos adereços folclorizados, nas menções simiescas. Talvez Frida sofresse.

Sua obsessão artística exercitava-se até no que lhe causava maior dor. Ela, por assim dizer, customizava os acessórios ortopédicos prescritos pela doença, pintava os espartilhos destinados a segurar a coluna, enfeitava os corsets e até mesmo decorou, no melhor estilo Frida Khalo, a prótese que passou a usar depois de ter umas das pernas amputadas. “Ela incluiu tudo isso em sua arte e na construção de seu estilo como se fossem peças de seu guarda-roupa, uma segunda pele, itens escolhidos e não involuntários”, afirma a cocuradora Circe Henestrosa, da School of Fashion de Cingapura.

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A Frida fashion precedeu a Frida pintora e continua prevalecendo sobre ela. Capa de Vogue America em 1937, ela ganhou nas últimas décadas uma ressurreição como it-girl, citada em repetidas passarelas (Jean-Paul Gaultier, em 1999, homenageou-a ao lado de um inesperado Marilyn Manson, e Riccardo Tisci botou o estilo Givency aos seus pés em 2010, entre muitos outros criadores enfeitiçados pela policromia floral dos looks dela) e no cinema, na versão de 2002 com a também mexicana Salma Hayek.

A Barbie inspirada em Frida, que a Mattel lançou em março deste ano, pelo Dia Internacional da Mulher, pode ser tomada como definitivo reconhecimento de um ícone da moda, se bem que os herdeiros dela não gostaram nem um pouco da figuração.

O documentário brasileiro Maria/Não se esqueça que venho dos trépicos, de Kiko Martins e Elisa Gomes, cita a visita que fez a Frida, em Coyoacán, a escultora e embaixatriz Maria Martins. A brasileira custou a ter nas artes o prestígio que seu talento extraordinário lhe reservava. Foi amante de Marcel Duchamp, xamã da modernidade, mas em sua dupla vida era a embaixatriz (à época em Washington) que predominava. Deve ter sido contrastante o encontro da artista subestimada, travestida em socialite, com a extrovertida Frida, incensada como revolucionária.

Maria levou consigo Nora, a filha mais velha. A adolescente cravou os olhos, fascinada, nos mil badulaques que Frida envergava, mesmo no leito. Ao se despedirem, Frida quis fazer uma gentileza com a menina. Tirou do dedo um de seus anéis prateados e deu a Nora. Quando as visitas chegaram lá fora, Maria arrancou da filha o presente e arremessou longe. À vista daquela figura esquálida e enfermiça, temia que o anel estivesse contaminado por alguma moléstia pestilenta.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

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