Cultura

Fora do eixo, longe do óbvio

Espécie de anti-Capitão Nascimento, policial alcoólatra criado por autor paraense encarna em Belém o drama da violência urbana e universal

Belém, cenário de 'Selva Concreta'. Foto: Galeria de renarir/Flickr
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SELVA CONCRETA


Edyr Augusto


Boitempo Editorial 122 págs., R$ 35 

 

Numa crônica escrita na Folha de S.Paulo em julho de 2009, o bravo Xico Sá lamentava a exclusão de Belém entre as sedes da Copa do Mundo a ser realizada no Brasil dali a cinco anos. A capital paraense, escreveu o colunista, era onde se cultivava a paixão mais decente pelo futebol. O único lugar onde uma equipe como o Paysandu conseguia levar 30 mil pessoas para o estádio numa partida da terceira divisão nacional. Lá pelas tantas, completava: “Injustiça é o que não falta nesse mundão perdido, onde não se consagra, imediatamente, por exemplo, o escritor paraense Edyr Augusto, autor de ‘Moscow’, entre outras belas narrativas fora do eixo das obviedades picaretas”.

Três anos depois, ainda dentro do eixo das obviedades picaretas, hoje faço coro a Xico Sá – e não só por também não ver sentido, além das obviedades políticas, na ausência de Belém entre as sedes do Mundial. É que, na semana passada, fui finalmente apresentado a Edyr Augusto (jornalista, radialista, dramaturgo e escritor paraense) quando recebi, pela Boitempo Editorial, o livro “Selva Concreta”. Pouco sabia dele até então, mas não precisei de duas páginas para colocar o autor na minha prateleira de descobertas de 2012.

O livro começa com o encontro do protagonista Gilberto Carvalho (o Gil), delegado de uma seccional de Belém, com uma cantora de technomelody em uma loja de importados. Ao vê-lo, a mulher sai em disparada – e só mais tarde vamos saber que ela estava envolvida no assassinato de um produtor musical que fazia estragos na lógica do mercado artístico local. Gil começa a busca pela testemunha, e não se sabe se movido pelo dever do ofício ou pela atração latente pela moça. Porque tudo ali parece se mover numa dinâmica confusa, em parágrafos curtos, secos, e uma profusão de diálogos sem travessão a acusar a simbiose entre crime e legalidade, violência e diversão, tecnologia e atraso, pujança e miséria, indústria e meio ambiente.

A bagunça parece parte da paisagem do município de quase 2 milhões de habitantes, porta de entrada para a Amazônia Legal, e deteriorada pela urbanização desenfreada, como qualquer outra cidade de qualquer estado de qualquer país. Uma urbanização que toma forma e produz os bolsões de abandono e ilegalidade (da gasolina adulterada ao latifúndio a quilômetros dali), a exploração sexual, o abuso de poder político e econômico dos playboys da cidade, o tráfico de drogas. Sobretudo desmandos – sobretudo do Estado, que investiga e manda arquivar conforme os interesses políticos, e não só locais. Temos todos um pouco com tudo isso, parece gritar o autor sem usar um ponto de exclamação sequer – como quando Scorsese dispara as músicas mais doces e calmas para as cenas mais violentas da ação.

É um banho em muito do que tenho acompanhado na seara literária de uma indústria editorial capaz de pagar milhões para lançar aqui os Best Sellers estrangeiros que engordam as burras de novos mecenas, se espalham em tudo quanto é bolsa no metrô, entram como foguete nas listas dos mais vendidos e correm em sentido reto até o esquecimento. Pois há bem mais cores, por aqui, do que cinquenta tons de cinza para quem quiser se embrenhar num Brasil tão profundo quanto mais próximo, embora não geograficamente, dos morros cariocas, da periferia paulistana, das áreas de desmate. Um Brasil que não é convidado a posar nos cartões postais produzidos por resorts amazônicos.

Nessa selva concreta, a honestidade do policial é quase piada pronta, embora latente. Ele se envolve, bebe com os investigados, se infiltra, flerta com as testemunhas, se estapeia com a própria ansiedade e, ao se tornar sujeito do objeto investigado, passa a interferir na própria ação – nem sempre para um desfecho melhor. Não há ali Capitão Nascimento para subir o morro e limpar o sistema por dentro; há, sim, um policial alcoólatra, tarado e desorganizado, que transita nos dois mundos e vê mais proteção no radialista sensacionalista da cidade, não por acaso apelidado de “Urubu”, do que no próprio chefe de polícia ou no governador.

Porque não há crime sem simbiose, como parece claro quando o autor descreve uma investigação sobre o tráfico de ecstasy na Estação das Docas, cartão-postal da cidade, que abastecia o caixa dois de um partido da base do governo. É uma violência pulsante, e é preciso se embrenhar no porão e no lixo de uma selva vendida para turista ver para entender a lógica de uma sobrevivência particular.

Com linguagem curta e seca, quase cinematográfica, o autor dá o seu recado ao restante do País que ignora a dinâmica da região. É como se dissesse: não é possível entender a Amazônia sem entender sua principal metrópole. Nem os fenômenos culturais, daqui e de lá, sem entender a efervescência notadamente urbana, notadamente conectada com o resto do mundo, notadamente impactada pela explosão da internet, produzida num espaço imenso que concentra 90% de sua população. E produz fenômenos que têm no ritmo a nomenclatura do que o restante do País prefere evitar: o brega, agora chamado de tecnomelody.

O fenômeno é conhecido Brasil afora. Mas o Brasil de Edyr Augusto é um país ainda a ser descoberto. E, a se observar a reação de suas páginas, está longe do conformismo que paralisa o seu entorno.

SELVA CONCRETA


Edyr Augusto


Boitempo Editorial 122 págs., R$ 35 

 

Numa crônica escrita na Folha de S.Paulo em julho de 2009, o bravo Xico Sá lamentava a exclusão de Belém entre as sedes da Copa do Mundo a ser realizada no Brasil dali a cinco anos. A capital paraense, escreveu o colunista, era onde se cultivava a paixão mais decente pelo futebol. O único lugar onde uma equipe como o Paysandu conseguia levar 30 mil pessoas para o estádio numa partida da terceira divisão nacional. Lá pelas tantas, completava: “Injustiça é o que não falta nesse mundão perdido, onde não se consagra, imediatamente, por exemplo, o escritor paraense Edyr Augusto, autor de ‘Moscow’, entre outras belas narrativas fora do eixo das obviedades picaretas”.

Três anos depois, ainda dentro do eixo das obviedades picaretas, hoje faço coro a Xico Sá – e não só por também não ver sentido, além das obviedades políticas, na ausência de Belém entre as sedes do Mundial. É que, na semana passada, fui finalmente apresentado a Edyr Augusto (jornalista, radialista, dramaturgo e escritor paraense) quando recebi, pela Boitempo Editorial, o livro “Selva Concreta”. Pouco sabia dele até então, mas não precisei de duas páginas para colocar o autor na minha prateleira de descobertas de 2012.

O livro começa com o encontro do protagonista Gilberto Carvalho (o Gil), delegado de uma seccional de Belém, com uma cantora de technomelody em uma loja de importados. Ao vê-lo, a mulher sai em disparada – e só mais tarde vamos saber que ela estava envolvida no assassinato de um produtor musical que fazia estragos na lógica do mercado artístico local. Gil começa a busca pela testemunha, e não se sabe se movido pelo dever do ofício ou pela atração latente pela moça. Porque tudo ali parece se mover numa dinâmica confusa, em parágrafos curtos, secos, e uma profusão de diálogos sem travessão a acusar a simbiose entre crime e legalidade, violência e diversão, tecnologia e atraso, pujança e miséria, indústria e meio ambiente.

A bagunça parece parte da paisagem do município de quase 2 milhões de habitantes, porta de entrada para a Amazônia Legal, e deteriorada pela urbanização desenfreada, como qualquer outra cidade de qualquer estado de qualquer país. Uma urbanização que toma forma e produz os bolsões de abandono e ilegalidade (da gasolina adulterada ao latifúndio a quilômetros dali), a exploração sexual, o abuso de poder político e econômico dos playboys da cidade, o tráfico de drogas. Sobretudo desmandos – sobretudo do Estado, que investiga e manda arquivar conforme os interesses políticos, e não só locais. Temos todos um pouco com tudo isso, parece gritar o autor sem usar um ponto de exclamação sequer – como quando Scorsese dispara as músicas mais doces e calmas para as cenas mais violentas da ação.

É um banho em muito do que tenho acompanhado na seara literária de uma indústria editorial capaz de pagar milhões para lançar aqui os Best Sellers estrangeiros que engordam as burras de novos mecenas, se espalham em tudo quanto é bolsa no metrô, entram como foguete nas listas dos mais vendidos e correm em sentido reto até o esquecimento. Pois há bem mais cores, por aqui, do que cinquenta tons de cinza para quem quiser se embrenhar num Brasil tão profundo quanto mais próximo, embora não geograficamente, dos morros cariocas, da periferia paulistana, das áreas de desmate. Um Brasil que não é convidado a posar nos cartões postais produzidos por resorts amazônicos.

Nessa selva concreta, a honestidade do policial é quase piada pronta, embora latente. Ele se envolve, bebe com os investigados, se infiltra, flerta com as testemunhas, se estapeia com a própria ansiedade e, ao se tornar sujeito do objeto investigado, passa a interferir na própria ação – nem sempre para um desfecho melhor. Não há ali Capitão Nascimento para subir o morro e limpar o sistema por dentro; há, sim, um policial alcoólatra, tarado e desorganizado, que transita nos dois mundos e vê mais proteção no radialista sensacionalista da cidade, não por acaso apelidado de “Urubu”, do que no próprio chefe de polícia ou no governador.

Porque não há crime sem simbiose, como parece claro quando o autor descreve uma investigação sobre o tráfico de ecstasy na Estação das Docas, cartão-postal da cidade, que abastecia o caixa dois de um partido da base do governo. É uma violência pulsante, e é preciso se embrenhar no porão e no lixo de uma selva vendida para turista ver para entender a lógica de uma sobrevivência particular.

Com linguagem curta e seca, quase cinematográfica, o autor dá o seu recado ao restante do País que ignora a dinâmica da região. É como se dissesse: não é possível entender a Amazônia sem entender sua principal metrópole. Nem os fenômenos culturais, daqui e de lá, sem entender a efervescência notadamente urbana, notadamente conectada com o resto do mundo, notadamente impactada pela explosão da internet, produzida num espaço imenso que concentra 90% de sua população. E produz fenômenos que têm no ritmo a nomenclatura do que o restante do País prefere evitar: o brega, agora chamado de tecnomelody.

O fenômeno é conhecido Brasil afora. Mas o Brasil de Edyr Augusto é um país ainda a ser descoberto. E, a se observar a reação de suas páginas, está longe do conformismo que paralisa o seu entorno.

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