Cultura
Foi quase
Em O Golpe Bateu na Trave, o cientista político Leonardo Avritzer analisa a fracassada (por pouco) intentona bolsonarista
Desta vez, os interessados em compreender a história do Brasil não serão obrigados a esperar duas décadas para ter análises e relatos confiáveis a respeito da organização de um golpe de Estado no País e suas consequências. Nos últimos três anos, pelo fato de o delírio autocrático ter fracassado, estudos acadêmicos variados e livros de jornalistas destinados a aproveitar a onda inundam as prateleiras com a promessa de decifrar a canhestra quartelada comandada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, condenado a 27 anos de prisão. É até difícil separar o joio do trigo. O oportunismo da consistência. O Golpe Bateu na Trave, do cientista político Leonardo Avritzer, entra na leva do trigo.
Em sintéticas 128 páginas, o professor aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenador do Observatório das Eleições discorre sobre dois pontos centrais da tramoia. O menos relevante, embora justifique o título, conclui que, ao contrário dos argumentos dos advogados de defesa e da crença dos bolsonaristas mais fanáticos, o Brasil correu riscos reais de ser aprisionado em uma nova ditadura, cujo tempo de duração e grau de violência são insondáveis. “Não foi um passeio no parque”, resume o ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito no Supremo Tribunal Federal. Bateu na trave.
O outro ponto, central, trata de identificar quem, nos poderes constituídos e na sociedade, impediu o golpe de saltar da minuta para os blindados e as pontas dos fuzis. Avritzer demole a fábula, conveniente aos militares, a seus apaniguados e a quem ainda é consumido por um temor reverencial dos fardados, de que a resistência republicana do Alto-Comando das Forças Armadas teria sido decisiva para impedir a aventura autoritária. Diante do número de oficiais, de todas as patentes, julgados e condenados pelo STF, insistir na fantasia de Pollyanna é uma tarefa inglória, até para o ministro da Defesa, um agente infiltrado dos generais no governo e não um representante do presidente Lula no diálogo com os comandantes.
O golpe bateu na trave. Leonardo Avritzer. Editora Autêntica (128 págs., 47,48 reais)
Se não foram os militares, quem salvou o Brasil da presepada? Em primeiro lugar, o Judiciário, afirma Avritzer, especificamente o Supremo. Ao contrário de 1964, a Corte tornou-se uma barreira às aspirações golpistas, salvo as exceções cujo empenho em negar os fatos foi recompensado pela Casa Branca: estão liberados a tomar sol em Miami e a fazer compras em Nova York. A esse esforço da maioria do STF de preservação das regras institucionais uniram-se forças políticas e sociais antes dispersas. Não foi tanto a quantidade, discorre o cientista político, mas a “qualidade” da resistência que evitou o pior.
Bolsonaro faz jus ao epíteto de mito. O capitão conseguiu dois feitos mitológicos, inesquecíveis, dignos da sua incompetência. É o primeiro presidente no exercício no cargo a não se reeleger desde que a possibilidade de dois mandatos consecutivos foi aprovada pelo Congresso, a despeito de quase ter levado o Brasil à bancarrota para se manter no Palácio do Planalto. E é o primeiro líder golpista condenado pela Justiça em um país constantemente acossado por quarteladas e anistias.
Bolsonaro, a esta altura, é um entulho descartado pelo sistema, uma página infeliz da nossa história. O golpismo não. Segue vivo e aloprado, alerta Avritzer. Todo cuidado é pouco. •
Publicado na edição n° 1389 de CartaCapital, em 26 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Foi quase’
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