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Finalmente, visíveis

‘Pretagonismos’, na galeria do BNDES, traz à luz obras de artistas negros guardadas no Museu Nacional de Belas Artes

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Oposições. Meninice-MG (2024),retrato da tia do artista paulistano Michel Onguer, dialoga com Retrato do Intrépido Marinheiro Simão (1853), rara pintura com um negro tratado como herói. A curadoria se debruçou, especialmente, sobre o gênero retrato – Imagem: Acervo/Museu Nacional de Belas Artes
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O Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), no Rio, foi o primeiro emprego de Reginaldo Tobias, um dos curadores de Pretagonismos, recém-aberta na galeria do BNDES.

Nascido em uma família pobre, Tobias cresceu na Fundação Casa e, quando a maioridade se aproximava, graças a um convênio da então Funabem, fez um curso no museu. Seu interesse pela arte o levou a ser contratado de pronto.

Cláudia Rocha, outra das curadoras, também estava no início da vida adulta quando pisou no suntuoso edifício do MNBA, no centro do Rio, para fazer um trabalho para a faculdade de Turismo. Aquela era a primeira vez em que entrava em um museu. Ao chegar em casa, vaticinou para a mãe: “Um dia, vou trabalhar lá”.

O sonho se realizou em 2010, quando, já formada em Museologia, passou no concurso do Instituto Brasileiro de Museus. Hoje, ela é doutoranda em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tobias, mestre em arte pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, é também professor da rede estadual de ensino.

Fruto do processo de revisão do que a historiadora Lilia Schwarcz denomina “pacto das imagens”, Pretagonismos não deixa de espelhar as trajetórias dos dois curadores.

A mostra questiona a institucionalização da arte no Brasil, que teve como marco, justamente, esse grande museu no centro do Rio

“Em 1988, no centenário da Abolição, propus uma exposição em que o negro fosse representado. Ela foi feita na biblioteca do museu”, conta Tobias. Trinta anos depois, ele teve a ideia inicial para a mostra Das Galés às Galerias: Representações e Protagonismos do Negro no Acervo do ­MNBA, semente do que se vê agora no BNDES.

Pretagonismos reúne 105 obras de 59 artistas – 46 negros e 13 brancos – que retratam pessoas negras a partir do século XVIII. Um dos desejos da curadoria era pensar o negro em um gênero específico da História da Arte: o retrato. “Isso nos permite notar as diferenças de quando o negro é retratado pelo branco e quando ele consegue se retratar”, diz Cláudia.

O caminho se inicia com Retrato do Intrépido Marinheiro Simão (1853), rara pintura com um negro colocado na posição de herói. O quadro homenageia o homem que salvou, a nado, 13 vítimas de um naufrágio.

À frente de Simão está Autorretrato como Tarsila do Amaral (2022), da carioca Panmela Castro, nome de destaque na arte contemporânea. Na pintura, ela aparece com vestimenta e pose historicamente atribuídas aos brancos ricos. Logo adiante, outra oposição: os negros em trabalhos pesados, em obra pouco posterior à abolição, e o retrato leve e descontraído que o paulistano Michel Onguer fez de sua tia.

Pretagonismos se constitui, nos diferentes núcleos, como um chamado para que notemos o racismo que ainda se deixa ocultar em imagens perpetuadas e naturalizadas. A curadoria, além de nos fazer enxergar o que apenas víamos – para usar a frase de Lilia Schwarcz –, propõe uma ressignificação do passado colonial.

Em uma marcante sequência, o paraense PV Dias calça sapatos e coloca máquinas fotográficas nas mãos dos negros retratados pelo fotógrafo português ­Fidanza, que atuou no século XIX, em Belém.

Os curadores, por sua vez, alteram os títulos de obras, riscando certas palavras. No lugar de “escravo”, lemos “escravizado”; e o título Pretinha – Busto de Preta vira Busto Feminino de Jovem. Nessa seção, grita o busto de José White Lafitte, maestro e professor cubano radicado no Brasil, esculpido como se anônimo fosse.

Trajetórias. A exposição, que reúne obras de 46 artistas negros, espelha a própria história dos curadores Cláudia Rocha e Reginaldo Tobias de Oliveira – Imagem: Redes sociais

“Enquanto o Visconde de Araguaia, feito pelo mesmo artista, Bernardelli, é retratado com livros e nome, o busto do maestro não tem qualquer traço que remeta a seu conhecimento”, pontua Tobias. “Quando se retratava um negro, não havia preocupação com a individualidade.”

Os apagamentos que a exposição contesta se estendem aos artistas negros presentes no acervo do museu, mas pouco ou nunca exibidos. É o caso de Arthur Timóteo da Costa, que se auto-representa com a pele mais clara; do escultor Francisco ­Manuel Chaves Pinheiro, retratista de pessoas­ brancas; das paisagens e cenas históricas de Firmino Monteiro; e das naturezas-mortas de Leôncio Vieira. Pretagonismos evidencia ainda a biografia desses artistas, quase sempre marcada por sofrimento.

Artistas populares, como Mestre Vitalino, Cincinho e Maria Auxiliadora também compõem o percurso expositivo. Muitas dessas obras, explica Cláudia, foram adquiridas a partir da década de 1960, quando o museu passou por uma virada. “Mas esse olhar é uma história de fluxos e refluxos”, observa.

O MNBA está fechado para o público desde 2019 e passa por uma reforma que envolve fachada, esquadrias, sistema de incêndio, modernização da parte elétrica e climatização da reserva técnica. A reabertura está prevista para o final de 2025 ou início de 2026 e, de acordo com a diretora, Daniela Matera, esta mostra é um “prelúdio” do que virá.

“Sairemos da tradição das Belas Artes e da organização das obras a partir de uma linha do tempo para algo mais questionador,”, diz. “Foi no Museu Nacional de Belas Artes que começou na institucionalização da arte no Brasil. A visualidade do Brasil passa por esse espaço.”

Pretagonismos segue na galeria do BNDES, a poucas quadras do MNBA, no centro do Rio, até fevereiro de 2025. •

*A jornalista viajou a convite da Associação de Amigos e Colaboradores do MNBA.


O PACTO DAS IMAGENS

Estudo minucioso mostra como quadros e fotos produziram e naturalizaram um projeto de Nação que exclui os negros

Imagens da branquitude. Lilia Moritz Schwarcz. Companhia das Letras (432 págs., 99,90 reais) – Compre na Amazon

Na introdução de Imagens da Branquitude – A Presença da Ausência, Lilia Schwarcz descreve, com pormenores, a tela argentina Don Eusebio de la ­Santa Federación (1830). Ela detém seu olhar especialmente sobre os pés do retratado, por serem os pés – e a falta de sapatos – uma “marca reiterada” da representação visual de negros. Lilia demonstra, nesse valioso livro, de que forma se “legitimou a hierarquia a partir do registro visual”, explicitando “as operações que fazem com que, mesmo tendo a capacidade de ‘ver’, não consigamos ‘enxergar’ os detalhes perversos das representações”. Sua análise soa quase como um pedido para que deixamos, ao menos, de ser omissos. (APS)

Publicado na edição n° 1327 de CartaCapital, em 11 de setembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Finalmente, visíveis ‘

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