Cultura
‘Filmes também têm cicatrizes’, diz o diretor do Festival É Tudo Verdade
A edição 2022 do festival reflete a pandemia, mas também outras das desventuras atuais


Na abertura do Festival É Tudo Verdade, realizada na noite de ontem no Espaço Itaú de Cinema, na rua Augusta, em São Paulo, Amir Labaki, criador e diretor do tradicional evento cinematográfico, mencionou mais de uma vez a alegria de, depois de dois anos, voltar a ver pessoas reunidas em uma sala de cinema.
Esta edição do festival reflete, pelas próprias características de realização de alguns filmes, a pandemia, mas também outras das desventuras atuais.
A guerra está presente em títulos como Navalny, que retrata os meses seguintes ao envenenamento de Alexei Navalni, conhecido opositor de Putin na Rússia, e O Processo – Praga 1952, retrato histórico da Tchecoslováquia dos anos 1950. As lutas indígenas são retratadas em mais um trabalho de Vincent Carelli, Adeus, Capitão, e a violência das ditaduras emerge de Diários de Mianmar e Quando Uma Cidade se Levanta.
Os 77 filmes selecionados, vindos de 34 países, podem ser vistos tanto em algumas salas de São Paulo e do Rio de Janeiro quanto nas plataformas É Tudo Verdade Play, Itaú Cultural e Sesc Digital. A programação completa pode ser acessada aqui.
Na entrevista abaixo, concedida por e-mail na manhã de hoje, Labaki fala um pouco mais sobre os significados desta 27º edição.
CartaCapital: Lembro que, em 2020, meu último evento presencial foi a coletiva de imprensa do É Tudo Verdade. E o Festival, naquele ano, acabaria já não podendo acontecer presencialmente. O que foi mais difícil naquele momento e qual a sensação de voltar a ter uma abertura em uma sala de cinema?
Amir Labaki: Começando pelo fim, a sensação é a de cautelosa alegria. Salas de cinema são o habitat essencial dos festivais. O mais difícil foi abrir mão, com o confinamento emergencial e a mudança para a esfera on-line, do contato humano, do convívio em cinemas.
CC: Ao longo destes dois anos, a própria realização de documentários acabou sendo comprometida pelas restrições sanitárias. De que forma isso se reflete na seleção e na programação?
AL: De um lado, reflete-se no tema dos próprios filmes, alguns deles presentes mesmo nas mostras competitivas. De outro, por vezes é evidente a utilização de um arquivo com menor qualidade técnica devido a dificuldades de acesso durante a pandemia. Filmes também têm cicatrizes.
CC: Por que você escolheu o filme dois filmes do Mark Cousins, que tratam do cinema e do olhar, para a abertura?
AL: Acho que formam um díptico que nos convida a uma pausa reflexiva. Sobre como e o que vemos, sobre como e o que vimos nos primeiros vinte anos deste século, sobre como e o que veremos no mundo pós-pandêmico. Era uma combinação irresistível para as primeiras aberturas presenciais em dois anos.
CC: Guerra, pandemia, extrema-direita no poder… As imagens do real parecem surgir de forma cada vez mais exacerbada e intensa à nossa frente. De que forma os documentaristas têm encarado seu objeto de trabalho?
AL: Creio que com ainda maior liberdade formal, uma característica aliás histórica, pois sujeitos a menores pressões comerciais. O espectador de documentários surpreende-se com muito maior frequência do que o de ficções.
CC: Na pré-pandemia, o É Tudo Verdade já vinha enfrentando desafios para se manter. Como foram estes anos de evento virtual em termos de viabilização financeira?
AL: Felizmente, jamais foram estritamente “desafios para se manter”, no sentido de que jamais esteve em causa a viabilidade de alguma das 27 edições do festival. Mas como todos os produtores culturais, tivemos de nos reinventar em bases orçamentárias muito menos favoráveis do que até cinco anos atrás. A realização virtual reduziu apenas marginalmente os custos e apenas em 2021, pois em 2020 fizemos de fato duas edições (março e setembro) e o orçamento foi maior do que originalmente planejado sem pandemia.
CC: Vocês farão uma edição híbrida. O digital veio para ficar, né? O que ele trouxe de novo para o festival – que já era itinerante, mas não tinha o alcance que o streaming propicia?
AL: O alcance simultâneo de um público mais amplo em todo o território brasileiro sob um selo de prestígio é um fenômeno extraordinário. Mas também maravilhoso é o ritual da descoberta de um filme partilhada por um público nas sombras de uma sala de cinema. O desafio para todo festival nos próximos anos é encontrar o ponto de equilíbrio entre as duas experiências.
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