Cultura

Filmes produzidos em aldeias ganham exibição e se inserem na luta pela terra

Uma rede­ de realizadores, devagar, vai conseguindo se inserir nos espaços que reproduziram estereótipos dos povos tradicionais

Vozes. Topawa, dos Parakaña, e Ava Ivy Vera, dos Guarani Kaiowa, estão no Itaú Cultural Play. Olinda, índia tupinambá, e Alvares, guarani, vêm ganhando destaque. (FOTO: Patrícia Ferreira MBya )
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Na semana passada, ao ver Jair Bolsonaro, de cocar na cabeça e flecha nas mãos, defendendo mais uma vez a exploração de terras reservadas aos indígenas, Olinda Yawar, cineasta que vive na aldeia Caramuru-Paraguaçu, na Bahia, não chegou sequer a se espantar. “A luta faz parte da nossa história, assim como esse tipo de violência”, diz, não resignada, mas realista.

Olinda, que é Tupinambá e Pataxó hã hã hãe, tem 31 anos e há quatro trabalha com audiovisual. Ela faz parte de uma rede­ de realizadores que, devagar, vai conseguindo inserir as próprias imagens nos espaços que, por mais de cem anos, reproduziram estereótipos dos povos tradicionais.

Equilíbrio, seu segundo longa-metragem, é um dos trabalhos que, neste momento, estão sendo disponibilizados gratuitamente em diferentes janelas ­virtuais. A produção saída de aldeias está no 32º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, que teve início na quinta-feira 19 e vai até 29 de agosto; na 10ª Mostra Ecofalante, que vai até 14 de setembro; e na seção Um Outro Olhar: ­Cineastas Indígenas, do Itaú Cultural Play.

Todos os realizadores têm um pé atrás com a expressão ‘cinema indígena’ que pressupõe uma uniformidade que não existe

“Antes, a gente era caça. Hoje, a gente é caçador da nossa própria história”, gosta de dizer o cineasta guarani Alberto Álvares, de 38 anos, nascido na aldeia de Porto Lindo, em Mato Grosso do Sul.

Essa produção tem origem conhecida: o projeto Vídeo nas Aldeias, fundado por Vincent Carelli em 1985. Foi Carelli, diretor dos seminais Corumbiara (2009) e Martírio (2016), quem entregou às tribos equipamentos de filmagem e edição que possibilitaram o início da construção dessa narrativa que hoje vai se revelando para públicos um pouco menos restritos.

Yaõkwa – Imagem e Memória, o mais recente filme de Carelli, feito com sua filha Rita, está na Mostra Ecofalante. O curta-metragem devolve, para os Enawenê-nawê, também de Mato Grosso do Sul, imagens dos anos 1990 que registram um ritual sagrado que tinha se perdido entre os jovens da tribo. A ideia de preservação da memória e da cultura, muito forte no Vídeo nas Aldeias, ainda serve de norte a muitos realizadores.

“O cinema é a salvaguarda da nossa oralidade. Agora mesmo, temos perdido os mais velhos para a Covid e, com eles, se vão muitos saberes. Tem uma parente que eu filmei que morreu na pandemia. Mas ficou o registro”, diz Álvares, presente em projetos do Itaú Cultural. “O cinema foi o caminho que encontrei para narrar a história do meu povo.”

Mas, três décadas após o início do Vídeo nas Aldeias, uma nova geração vai rompendo com a ideia de encantamento – que passa pelo registro de ritos e modos de ser – para fazer um cinema mais colado à ideia de sobrevivência e de luta.
“A gente ultrapassou o momento do desvelamento”, demarca Graciela Guarani, que participará do Festival de Curtas. “Não se trata mais apenas da possibilidade de nos vermos e de nos fazermos ver. Nosso cinema está cada vez mais aguerrido e não se limita ao vislumbre.”

Graciela é formada em Comunicação e tem 35 anos. Ela nasceu na aldeia de Jaguapiru, em Dourados, Mato Grosso do Sul, e vive em Jatobá, município do sertão Pernambuco. Apesar de a cidade ser bem pequena, ela não se adaptou à vida urbana e está de mudança para a aldeia Pankararu, de onde é seu companheiro, Alexandre Pankararu. Ambos são lideranças da Associação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme).

O primeiro longa-metragem de Graciela, Meu Sangue É Vermelho, foi viabilizado por um produtor inglês e ganhou mais de 20 prêmios. Apesar de acolhida nos ambientes estabelecidos do audiovisual – ela foi, por exemplo, membro do júri do Festival de Brasília e curadora do Festival de Tiradentes –, Graciela vê um paradoxo na relação entre a produção vinda das aldeias e os espectadores não indígenas.

“A maioria dos espaços ainda trabalha com recortes que enfocam o espiritual e o cultural. É difícil que o olhar mais político e engajado tenha lugar”, diz. “Acho que é porque alguns filmes chocam. A violência que sofremos há séculos foi assimilada pelas comunidades. A minha aldeia, por exemplo, é uma das mais violentas, com parente matando parente. E esse tipo de coisa é de difícil assimilação.”

Todos os realizadores têm um pé atrás com a expressão “cinema indígena”, que pressupõe uma uniformidade, ou um todo, que não existem. Mas, apesar de não se reconhecerem nela, eles tampouco a refutam porque sabem que as “caixinhas”, ainda que sejam reducionistas, fazem parte desse processo de inserção.

“Está havendo, por exemplo, uma busca cada vez maior por curadorias indígenas”, diz Olinda, que entende que cada fresta aberta contribui para a luta mais ampla de seu povo, que passa pela demarcação de terras e pela questão ambiental – essa, a principal responsável pelo interesse estrangeiro nesse cinema. Com o atual governo, os indígenas se consideram em guerra. E toda guerra, eles sabem, se dá também no campo das narrativas.

REPRESENTAÇÃO

Zahy Guajajara vai expor obras de videoarte no Masp

Dor. Aiku’è (R-existo) nasceu do desejo da artista de falar do massacre de seu povo. (FOTO: Zahy Guajajara)

No próximo dia 27, o Masp abre a exposição Sala de Vídeo: Zahy Guajajara, que reúne dois trabalhos de Zahy, multiartista e ativista nascida na aldeia Colônia, na reserva indígena Cana Brava, no Maranhão.

Zahy é também atriz, com passagens pela tevê (na série Dois Irmãos), pelo cinema (Não Devore Meu Coração) e pelo ­teatro (Macunaíma – Uma ­Rapsódia Musical). Os dois ví­deos que o Masp exibe, Aiku’è (R-existo), de 2017, e Pytuhem: Uma Carta em Defesa dos Guardiões da Floresta, de 2020, têm o massacre das populações indígenas como pano de fundo.

Publicado na edição nº 1171 de CartaCapital, em 20 de agosto de 2021.

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