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Filhos de Jorge

Jorge Amado foi um espanto permanente, um assombro constante, escreve Emiliano José

Jorge Amado era um assombro constante, escreve Emiliano José. Foto: Governo da Bahia/Flickr
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por Emiliano José

 

“Na vida o que vale é o espanto”. A notável frase é de Oscar Niemeyer, e me foi lembrada por Hamilton Pereira, o poeta Pedro Tierra, num depoimento recente, emocionante, numa cela do antigo DOPS, hoje Memorial da Resistência, em São Paulo, para o filme que estou realizando sobre o padre Renzo Rossi. A capacidade de surpreender é que revela a riqueza e a densidade do ser humano. Sem o espanto, a vida é cinzenta, rotineira, sem o impacto do maravilhoso, e as maravilhas vem sempre sob a forma do espanto.

Jorge Amado foi um espanto permanente, um assombro constante, uma metamorfose ambulante, uma tempestade de vida a cada um dos mais de cinco mil personagens que povoaram sua existência e suas dezenas de livros. Nascido a 10 de agosto de 1912 na fazenda Auricídia, em Ferradas, município de Itabuna, falece em 6 de agosto de 2001, na Cidade da Bahia, nossa querida Salvador da Bahia de Todos os Santos, a quem ele tanto amava. Suas cinzas estão sob a mangueira que lhe deu sombra durante tanto tempo, no jardim da casa do bairro do Rio Vermelho.

“Não é exagero dizer: Jorge Amado foi o inventor do Brasil moderno”. É dessa maneira que a ele se refere o jornalista e escritor José Castello. Na visão dele, não há escritor brasileiro que tenha a imagem pessoal tão ligada à de nosso país quanto Jorge Amado, homenageado recentemente pelo Congresso Nacional pelo seu centenário graças à iniciativa da querida amiga, senadora Lídice da Mata, sempre atenta à vida dos melhores intérpretes da Bahia, entre os quais avulta a figura extraordinária de Jorge. Jorge via a literatura como brincadeira de menino, nunca acreditou-se um literato, apenas um homem que gostava de escrever, um escritor e mais nada.

Tenho a tentação, nesse centenário amadiano, de dizer que a minha geração, parte desse Brasil moderno, de suas grandezas e misérias,  de suas lutas e esperanças, foi, de uma certa maneira, plasmada por ele, teve sua existência marcada por ele.  Falo de uma geração nascida nos meados da década de 40, e especialmente de uma parte dela que se envolveu nas lutas do pré-1964 e de modo especial na luta para derrotar a ditadura, longa noite de sombra e terror que envolveu a sociedade brasileira a partir daquele fatídico 1º de abril de 1964.

Fomos, essa geração, leitores ávidos da primeira fase de Jorge Amado, aquela iniciada no frescor de seus dezenove anos, com “O país do carnaval”, em setembro de 1931, ao qual se seguem Cacau, Suor, Jubiabá, Mar morto, Capitães da Areia, ABC de Castro Alves, O Cavaleiro da Esperança, Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus, O amor do soldado, O mundo da paz e a trilogia Os subterrâneos da liberdade, entre outros. Aqui, revela-se um país dissecado pelo olhar crítico de Jorge Amado.

Aqui aparece o comunista, o admirador do socialismo, o deputado eleito pelo PCB pelo Estado de São Paulo, o militante, o homem de esquerda. Se quiséssemos rotular, poderíamos dizer que aqui ele era influenciado pelo realismo socialista, mas isso, penso, traduz pouco tudo o que produziu nesse período. Traduz pouco ou minimiza sua contribuição à literatura brasileira naquele momento.

Se algumas obras tem aquela característica, outras não, embora o conjunto, de fato, esteja bastante vinculado àquela concepção. Não se queira, no entanto, diminuir a qualidade de seu trabalho da época, que traduzia um Brasil que se industrializava, que contava com uma significativa classe operária, com um Partido Comunista ao qual ele pertencia, apresentava uma Bahia agrária, de latifundiários e pistoleiros, e o mar, e seus pescadores e seus amores, e o Pelourinho, suas belezas e misérias, um Brasil que contava com um povo em luta.

Essa fase, para não embarcarmos em quaisquer visões reducionistas, fez surgir uma obra que revelava sofisticação literária, construção de personagens densos, que mereceu de ninguém menos que Mário de Andrade a frase direta, seca, reveladora: “Seu Jorge, doutor em romance”, na abertura de uma correspondência de 1936. Na carta que envia a Jorge, Mário de Andrade revela-se encantado com os romances anteriores – já haviam sido publicados O país do carnaval, Cacau, Suor e Jubiabá –, mas, sobretudo, com Mar morto.

A minha geração, a que acreditou ser possível derrotar a ditadura, que contra ela lutou, morreu, desapareceu, e também sobreviveu, talvez admirasse mais o lado, chamemos assim, engajado da obra do que a sofisticação da criação dos personagens. Mais o Cavaleiro da Esperança ou Os Subterrâneos da Liberdade ou Terras do Sem Fim do que Mar morto, por exemplo. A leitura daquelas obras de Jorge Amado era um alento para nós, em outros tempos.

Se ele havia vivido os anos 30, a ditadura Vargas, fora preso 11 vezes, vivera a primavera pós-Vargas, e depois o Vargas democrático, nós, na nossa juventude, fomos tragados pela noite do terror ditatorial em 1964 e levados a nos fortalecer com sua literatura militante, em outro tempo, diverso do dele, e parecido com o dele.

A ditadura nos revisitava, e Jorge Amado nos acompanhava com sua palavra alentadora, intérprete de um Brasil que ainda não amadurecera para a democracia. Jorge Amado, a seu modo, com sua literatura, formou politicamente muitos de nós. Nós e Jorge andávamos, então, de mãos dadas.

Mas, Jorge, ao sofrer uma profunda decepção com as revelações dos crimes de Stalin, expostos numa reunião do Comitê Central do PCB, em 1956, para a qual fora convidado mesmo não sendo membro, foi se preparando internamente para nos causar outro espanto. O choque que recebera não fora pequeno. Isso o levou a afastar-se da militância orgânica do PCB e, quem sabe, a refletir sobre a vida e sobre os rumos de sua literatura. Submergiu, escrevendo. Quem há de adivinhar como se dão essas revoluções na alma de cada um?

Veio 1958, e um novo espanto, assombroso espanto, a nos maravilhar, nos embevecer, nos encantar e surpreender o mundo com Gabriela, é, ela mesma, cravo e canela, até hoje a invadir nossas noites, presença repetida e sempre nova, revelação continuada sobre a cultura, a vida do povo baiano e brasileiro.

Jorge resolvera mergulhar em outro Brasil, bem menos esquemático, bem mais diverso, mais colorido, mais revelador da complexidade e beleza do povo baiano e brasileiro. O que se anunciava já nas obras anteriores, porque afinal ele sempre bebeu na diversidade, no colorido, nas agruras e esperanças do povo baiano, aqui, com Gabriella, cravo e canela acontece uma explosão de sensualidade, afirmação da mulher, revelação também das violências e dos preconceitos contra ela, celebração da alegria, a vida como ela é – sempre um espanto, sempre um susto.

A morte e a morte de Quincas Berro Dágua sucede Grabriela, cravo e canela, a anunciar um novo e maravilhoso e sofisticado ciclo que o acompanhará vitoriosamente até o fim de seus dias: Os pastores da noite, com o candomblé fortemente na cena; Dona Flor e seus dois maridos,; Tenda dos Milagres; Tereza Batista cansada de guerra; Tieta do Agreste; Tocaia grande, entre outros.

Não posso me querer intérprete de minha geração, mas sei que alguns dos que a ela pertenceram, experimentaram, como eu, lendo Jorge ou não, a sensação também dessa mudança. Resistentes, no começo, àquela vertigem de sensualidade, àquela explosão de sexualidade, aquele humor, àquela religiosidade negra, aqueles meninos capitaneando na areia. Afinal, gostávamos tanto do Jorge de Subterrâneos da Liberdade, que tanto nos ensinou, tanto nos doutrinou, que funcionava como música para nossos ouvidos militantes.

A vida não pode ser uma permanente escolha entre o bem e o mal – e de alguma forma nossa militância de esquerda, que valorizo e vivo até hoje, muitas vezes era isso. Jorge Amado, com sua notável literatura dessa segunda fase, nos indica um outro caminho, e nos mostra outro Brasil, o de Dona Flor, que entre Vadinho e Teodoro, fica com os dois. Aqui, a mulher se liberta, não quer exclusões, quer amar de maneira mais simples e mais complexa, simultaneamente.

Em Dona Flor, é também a análise de José Castello, aceitam-se os paradoxos e as incoerências e a beleza que definem o humano. Ao aceitar a vida como uma experiência múltipla e nem sempre coerente, linear; ao buscar a felicidade no cipoal aparentemente incoerente da existência, os personagens de Dona Flor revelam-se fortalecidos como seres humanos.

Os muitos personagens dessa nova fase de Jorge Amado, mais do que nunca doutor em romance, revelarão que a felicidade não é um estado contínuo, mas pode ser vivida, buscada, em meio a cenários de dificuldades. Viver é sempre arriscoso. A vida não caminha em linha reta. Não cabia torcer contra a seleção brasileira porque a ditadura aproveitava-se eventualmente das vitórias dela. Os militantes dos ásperos tempos passavam a acreditar que tinham direito à felicidade, ao prazer.

E o Jorge, nosso amado doutor em romance, firma suas convicções libertárias, despe-se de maniqueísmos, abre-se amplamente para o mundo, apaixona-se mais e mais pela religião negra, o candomblé, ah, minha mãe, minha mãe Menininha, Menininha do Gantois, fortalece seus personagens negros, eleva a mulher e sua liberdade e sua sensualidade e seu direito ao prazer.

As duas fases de Jorge são complementares, e o tornam um escritor singular, artista da alma e das lutas do povo brasileiro. Enganam-se os que querem erguer um Muro de Berlim entre o primeiro e o segundo momento. Jorge é um e é muitos ao mesmo tempo.

Ao fincar sua literatura na Bahia, maravilhosa Bahia, ao singrar mares, viver com pescadores, ser ogã de Mãe Senhora, discípulo de Mãe Menininha, correr campos, colher cacau, sentir o agreste, caminhar por terras do sem fim, conhecer coronéis e pistoleiros, brincar com os capitães da areia, dançar com Gabriela, sentir o suor dos estivadores, conhecer o trabalho dos operários, conviver e ser amigo dos comunistas, como Prestes e  Marighella, ao mergulhar na vida do povo baiano, Jorge Amado tornou-se um romancista universal, o mais traduzido autor brasileiro no exterior.

Ao traduzir sua aldeia com tanta densidade, ao revelar a alma de sua terra, conseguiu tocar a alma do mundo. E só tocou a alma do mundo porque “só aquele conhecimento que se viveu dia a dia, minuto a minuto, no erro e no acerto, na alegria e na tristeza, no desespero e na esperança, na luta e na dor, na gargalhada e no choro, na hora de nascer e na hora de morrer – só esse conhecimento possibilita a criação”, como ele próprio disse.

Viva Jorge Amado, eterno Jorge, doutor em romance. O romance da vida, o romance do espanto ininterrupto, sonho em forma de palavra que nos fez ver que a felicidade não marca encontro com cada um de nós – nós é que a construímos no meio da incessante tempestade da vida. Nós, filhos de Jorge, soubemos fazer a transição de militantes sisudos do socialismo para uma militância que aceita a alegria e que busca a felicidade no meio da luta universal por um modo de produzir que nos leve a um mundo mais justo e, por que não, mais feliz.

 

por Emiliano José

 

“Na vida o que vale é o espanto”. A notável frase é de Oscar Niemeyer, e me foi lembrada por Hamilton Pereira, o poeta Pedro Tierra, num depoimento recente, emocionante, numa cela do antigo DOPS, hoje Memorial da Resistência, em São Paulo, para o filme que estou realizando sobre o padre Renzo Rossi. A capacidade de surpreender é que revela a riqueza e a densidade do ser humano. Sem o espanto, a vida é cinzenta, rotineira, sem o impacto do maravilhoso, e as maravilhas vem sempre sob a forma do espanto.

Jorge Amado foi um espanto permanente, um assombro constante, uma metamorfose ambulante, uma tempestade de vida a cada um dos mais de cinco mil personagens que povoaram sua existência e suas dezenas de livros. Nascido a 10 de agosto de 1912 na fazenda Auricídia, em Ferradas, município de Itabuna, falece em 6 de agosto de 2001, na Cidade da Bahia, nossa querida Salvador da Bahia de Todos os Santos, a quem ele tanto amava. Suas cinzas estão sob a mangueira que lhe deu sombra durante tanto tempo, no jardim da casa do bairro do Rio Vermelho.

“Não é exagero dizer: Jorge Amado foi o inventor do Brasil moderno”. É dessa maneira que a ele se refere o jornalista e escritor José Castello. Na visão dele, não há escritor brasileiro que tenha a imagem pessoal tão ligada à de nosso país quanto Jorge Amado, homenageado recentemente pelo Congresso Nacional pelo seu centenário graças à iniciativa da querida amiga, senadora Lídice da Mata, sempre atenta à vida dos melhores intérpretes da Bahia, entre os quais avulta a figura extraordinária de Jorge. Jorge via a literatura como brincadeira de menino, nunca acreditou-se um literato, apenas um homem que gostava de escrever, um escritor e mais nada.

Tenho a tentação, nesse centenário amadiano, de dizer que a minha geração, parte desse Brasil moderno, de suas grandezas e misérias,  de suas lutas e esperanças, foi, de uma certa maneira, plasmada por ele, teve sua existência marcada por ele.  Falo de uma geração nascida nos meados da década de 40, e especialmente de uma parte dela que se envolveu nas lutas do pré-1964 e de modo especial na luta para derrotar a ditadura, longa noite de sombra e terror que envolveu a sociedade brasileira a partir daquele fatídico 1º de abril de 1964.

Fomos, essa geração, leitores ávidos da primeira fase de Jorge Amado, aquela iniciada no frescor de seus dezenove anos, com “O país do carnaval”, em setembro de 1931, ao qual se seguem Cacau, Suor, Jubiabá, Mar morto, Capitães da Areia, ABC de Castro Alves, O Cavaleiro da Esperança, Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus, O amor do soldado, O mundo da paz e a trilogia Os subterrâneos da liberdade, entre outros. Aqui, revela-se um país dissecado pelo olhar crítico de Jorge Amado.

Aqui aparece o comunista, o admirador do socialismo, o deputado eleito pelo PCB pelo Estado de São Paulo, o militante, o homem de esquerda. Se quiséssemos rotular, poderíamos dizer que aqui ele era influenciado pelo realismo socialista, mas isso, penso, traduz pouco tudo o que produziu nesse período. Traduz pouco ou minimiza sua contribuição à literatura brasileira naquele momento.

Se algumas obras tem aquela característica, outras não, embora o conjunto, de fato, esteja bastante vinculado àquela concepção. Não se queira, no entanto, diminuir a qualidade de seu trabalho da época, que traduzia um Brasil que se industrializava, que contava com uma significativa classe operária, com um Partido Comunista ao qual ele pertencia, apresentava uma Bahia agrária, de latifundiários e pistoleiros, e o mar, e seus pescadores e seus amores, e o Pelourinho, suas belezas e misérias, um Brasil que contava com um povo em luta.

Essa fase, para não embarcarmos em quaisquer visões reducionistas, fez surgir uma obra que revelava sofisticação literária, construção de personagens densos, que mereceu de ninguém menos que Mário de Andrade a frase direta, seca, reveladora: “Seu Jorge, doutor em romance”, na abertura de uma correspondência de 1936. Na carta que envia a Jorge, Mário de Andrade revela-se encantado com os romances anteriores – já haviam sido publicados O país do carnaval, Cacau, Suor e Jubiabá –, mas, sobretudo, com Mar morto.

A minha geração, a que acreditou ser possível derrotar a ditadura, que contra ela lutou, morreu, desapareceu, e também sobreviveu, talvez admirasse mais o lado, chamemos assim, engajado da obra do que a sofisticação da criação dos personagens. Mais o Cavaleiro da Esperança ou Os Subterrâneos da Liberdade ou Terras do Sem Fim do que Mar morto, por exemplo. A leitura daquelas obras de Jorge Amado era um alento para nós, em outros tempos.

Se ele havia vivido os anos 30, a ditadura Vargas, fora preso 11 vezes, vivera a primavera pós-Vargas, e depois o Vargas democrático, nós, na nossa juventude, fomos tragados pela noite do terror ditatorial em 1964 e levados a nos fortalecer com sua literatura militante, em outro tempo, diverso do dele, e parecido com o dele.

A ditadura nos revisitava, e Jorge Amado nos acompanhava com sua palavra alentadora, intérprete de um Brasil que ainda não amadurecera para a democracia. Jorge Amado, a seu modo, com sua literatura, formou politicamente muitos de nós. Nós e Jorge andávamos, então, de mãos dadas.

Mas, Jorge, ao sofrer uma profunda decepção com as revelações dos crimes de Stalin, expostos numa reunião do Comitê Central do PCB, em 1956, para a qual fora convidado mesmo não sendo membro, foi se preparando internamente para nos causar outro espanto. O choque que recebera não fora pequeno. Isso o levou a afastar-se da militância orgânica do PCB e, quem sabe, a refletir sobre a vida e sobre os rumos de sua literatura. Submergiu, escrevendo. Quem há de adivinhar como se dão essas revoluções na alma de cada um?

Veio 1958, e um novo espanto, assombroso espanto, a nos maravilhar, nos embevecer, nos encantar e surpreender o mundo com Gabriela, é, ela mesma, cravo e canela, até hoje a invadir nossas noites, presença repetida e sempre nova, revelação continuada sobre a cultura, a vida do povo baiano e brasileiro.

Jorge resolvera mergulhar em outro Brasil, bem menos esquemático, bem mais diverso, mais colorido, mais revelador da complexidade e beleza do povo baiano e brasileiro. O que se anunciava já nas obras anteriores, porque afinal ele sempre bebeu na diversidade, no colorido, nas agruras e esperanças do povo baiano, aqui, com Gabriella, cravo e canela acontece uma explosão de sensualidade, afirmação da mulher, revelação também das violências e dos preconceitos contra ela, celebração da alegria, a vida como ela é – sempre um espanto, sempre um susto.

A morte e a morte de Quincas Berro Dágua sucede Grabriela, cravo e canela, a anunciar um novo e maravilhoso e sofisticado ciclo que o acompanhará vitoriosamente até o fim de seus dias: Os pastores da noite, com o candomblé fortemente na cena; Dona Flor e seus dois maridos,; Tenda dos Milagres; Tereza Batista cansada de guerra; Tieta do Agreste; Tocaia grande, entre outros.

Não posso me querer intérprete de minha geração, mas sei que alguns dos que a ela pertenceram, experimentaram, como eu, lendo Jorge ou não, a sensação também dessa mudança. Resistentes, no começo, àquela vertigem de sensualidade, àquela explosão de sexualidade, aquele humor, àquela religiosidade negra, aqueles meninos capitaneando na areia. Afinal, gostávamos tanto do Jorge de Subterrâneos da Liberdade, que tanto nos ensinou, tanto nos doutrinou, que funcionava como música para nossos ouvidos militantes.

A vida não pode ser uma permanente escolha entre o bem e o mal – e de alguma forma nossa militância de esquerda, que valorizo e vivo até hoje, muitas vezes era isso. Jorge Amado, com sua notável literatura dessa segunda fase, nos indica um outro caminho, e nos mostra outro Brasil, o de Dona Flor, que entre Vadinho e Teodoro, fica com os dois. Aqui, a mulher se liberta, não quer exclusões, quer amar de maneira mais simples e mais complexa, simultaneamente.

Em Dona Flor, é também a análise de José Castello, aceitam-se os paradoxos e as incoerências e a beleza que definem o humano. Ao aceitar a vida como uma experiência múltipla e nem sempre coerente, linear; ao buscar a felicidade no cipoal aparentemente incoerente da existência, os personagens de Dona Flor revelam-se fortalecidos como seres humanos.

Os muitos personagens dessa nova fase de Jorge Amado, mais do que nunca doutor em romance, revelarão que a felicidade não é um estado contínuo, mas pode ser vivida, buscada, em meio a cenários de dificuldades. Viver é sempre arriscoso. A vida não caminha em linha reta. Não cabia torcer contra a seleção brasileira porque a ditadura aproveitava-se eventualmente das vitórias dela. Os militantes dos ásperos tempos passavam a acreditar que tinham direito à felicidade, ao prazer.

E o Jorge, nosso amado doutor em romance, firma suas convicções libertárias, despe-se de maniqueísmos, abre-se amplamente para o mundo, apaixona-se mais e mais pela religião negra, o candomblé, ah, minha mãe, minha mãe Menininha, Menininha do Gantois, fortalece seus personagens negros, eleva a mulher e sua liberdade e sua sensualidade e seu direito ao prazer.

As duas fases de Jorge são complementares, e o tornam um escritor singular, artista da alma e das lutas do povo brasileiro. Enganam-se os que querem erguer um Muro de Berlim entre o primeiro e o segundo momento. Jorge é um e é muitos ao mesmo tempo.

Ao fincar sua literatura na Bahia, maravilhosa Bahia, ao singrar mares, viver com pescadores, ser ogã de Mãe Senhora, discípulo de Mãe Menininha, correr campos, colher cacau, sentir o agreste, caminhar por terras do sem fim, conhecer coronéis e pistoleiros, brincar com os capitães da areia, dançar com Gabriela, sentir o suor dos estivadores, conhecer o trabalho dos operários, conviver e ser amigo dos comunistas, como Prestes e  Marighella, ao mergulhar na vida do povo baiano, Jorge Amado tornou-se um romancista universal, o mais traduzido autor brasileiro no exterior.

Ao traduzir sua aldeia com tanta densidade, ao revelar a alma de sua terra, conseguiu tocar a alma do mundo. E só tocou a alma do mundo porque “só aquele conhecimento que se viveu dia a dia, minuto a minuto, no erro e no acerto, na alegria e na tristeza, no desespero e na esperança, na luta e na dor, na gargalhada e no choro, na hora de nascer e na hora de morrer – só esse conhecimento possibilita a criação”, como ele próprio disse.

Viva Jorge Amado, eterno Jorge, doutor em romance. O romance da vida, o romance do espanto ininterrupto, sonho em forma de palavra que nos fez ver que a felicidade não marca encontro com cada um de nós – nós é que a construímos no meio da incessante tempestade da vida. Nós, filhos de Jorge, soubemos fazer a transição de militantes sisudos do socialismo para uma militância que aceita a alegria e que busca a felicidade no meio da luta universal por um modo de produzir que nos leve a um mundo mais justo e, por que não, mais feliz.

 

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