Cultura
Ficção com raízes andinas
As narrativas da equatoriana Mónica Ojeda flertam, a um só tempo, com o gótico e as crenças populares da região


Se o título do romance mais recente da equatoriana Mónica Ojeda soa psicodélico – Xamãs Elétricos na Festa do Sol –, o enredo não fica atrás. No livro, um grupo de jovens participa de um festival de música experimental realizado aos pés de um vulcão, nas entranhas do Equador, na época do Inti Raymi, tradicional celebração andina ao deus Sol que marca o solstício de inverno do Hemisfério Sul e o início de um novo período agrícola.
Entre músicos, performers, poetas e fãs, circulam os Diablumas, indivíduos mascarados que encarnam uma figura típica do folclore equatoriano: o ser mítico de duas caras, dançarino, que simboliza o caráter dual do mundo.
Batizado de “Ruído Solar”, expressão plagiada do poeta andino Ariruma Pantaguano, tido como um xamã lírico, o festival – que de fato acontece anualmente – reúne grupos musicais que conciliam ritmos e instrumentos ancestrais com acordes futuristas e sons da natureza. O público hospeda-se em tendas armadas ao redor do vulcão, simulando um vilarejo do fim do mundo.
Informações detalhadas sobre o evento circulam apenas via boca a boca. Após cada edição, um fato curioso: nem todos os participantes retornam às suas cidades. Comenta-se que os “desaparecidos” passam a habitar as montanhas e a provar outras maneiras de viver.
A fim de criar uma atmosfera inebriante, Mónica Ojeda explora uma linguagem onírica e fragmentária, repleta de termos em quíchua e evocações do ideário andino.
A escritora teve, antes, três outras obras publicadas no Brasil: o romance Mandíbula e a coletânea de contos Las Voladoras (ambas pela Autêntica Contemporânea) e o livro de poemas História do Leite (Jabuticaba).
Nos dois primeiros, o terror aparecia de forma mais explícita do que em Xamãs Elétricos, onde as características do gênero mostram-se diluídas, como uma sensação de risco à espreita.
De um lado, há a violência causada pelo narcotráfico e a resposta igualmente brutal do Estado; de outro, as imprevisíveis manifestações da natureza, por meio de terremotos e erupções vulcânicas.
Xamãs Elétricos na Festa do Sol. Mónica Ojeda. Tradução: Silvia Massimini Felix. Autêntica Contemporânea (296 págs., 79,80 reais) – Compre na Amazon
Embora a trajetória das amigas Nicole e Noa seja o eixo em torno do qual giram os demais personagens, a autora aposta numa narrativa polifônica. As duas jovens deixam Guayaquil, a maior cidade do Equador, rumo ao festival Ruído do Sol, na tentativa de escapar da realidade em que vivem, marcada por confrontos cotidianos entre gangues e a polícia, em um país cada vez mais militarizado e com alto índice de homicídios.
A cética Nicole deseja aplacar sua sensação de desamparo. Noa, mais suscetível aos sinais transcendentes, quer reencontrar o pai que a abandonou na infância.
Dividido em sete partes, o livro alterna capítulos narrados em primeira pessoa por Nicole e outros jovens e trechos dos “Cadernos da Floresta Alta”, uma espécie de diário escrito pelo pai de Noa, um homem que largou a vida urbana para se refugiar nas montanhas e dedicar-se à taxidermia e à contemplação da natureza.
Ainda que a autora crie um conjunto caleidoscópico de vozes, nem sempre a mudança de ponto de vista resulta em uma dicção própria. Há momentos em que as falas de diferentes personagens soam bem parecidas.
O protagonismo da história, de toda forma, está na música, no território e no corpo dos participantes do festival. São descritos, de forma intensa, os estímulos sonoros, a paisagem e as coreografias alucinantes. Vez ou outra, o texto fica um tanto enigmático; ainda assim, não perde seu tom hipnótico.
Mónica Ojeda tem se destacado, entre as escritoras latino-americanas, como uma voz inventiva e perturbadora, que lida com o terror a partir de uma perspectiva territorializada, contemplando as especificidades políticas, culturais e geográficas do continente. Suas obras são frequentemente associadas ao “gótico andino”, termo que designa narrativas de medo e violência vinculadas a contextos e crenças típicos dos Andes.
Em Xamãs Elétricos, o festival Ruído Solar funciona como um espaço de transição que possibilita um deslocamento radical das vivências cotidianas e a abertura a outras percepções da realidade. Não à toa, os Diablumas aparecem ao longo de toda a narrativa, anunciando o inevitável choque de mundos. E Pantaguano, o Poeta, funciona como um arauto a invocar novos futuros.
Em um cenário pré-apocalíptico, não há certezas, apenas cinzas – resquícios da atividade dos vulcões, centrais para a narrativa.
Fascinada por essas estruturas geológicas – o Equador abriga 27 vulcões potencialmente ativos –, Mónica criou também um fanzine no qual reflete sobre as relações entre as dinâmicas vulcânicas e a escrita. A edição brasileira de Xamãs Elétricos traz essa publicação encartada
Em um dos trechos, ela afirma: “Geoescrita. Escrevo: pensei que meu caminho era o desenraizamento, mas a imaginação tem a forma do território onde aprendi a dançar pela primeira vez”. •
Publicado na edição n° 1364 de CartaCapital, em 04 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ficção com raízes andinas’
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