Cultura
Ferrugem, poeira e choro de corno
‘Oeste Outra Vez’, passado no sertão de Goiás, conta uma história sobre a fragilidade dos homens brutos


Em Oeste Outra Vez, dirigido por Érico Rassi, a paisagem do sertão de Goiás contextualiza muito do que se pode saber sobre os personagens antes que eles abram a boca.
Na tela, sob uma iluminação naturalista, estão objetos familiares a qualquer um que tenha pisado em uma cidade do interior dos territórios tropicais e semiáridos brasileiros: tomadas velhas, cortinas de pano – fazendo as vezes de portas –, cachaça no copo americano sobre a mesa de sinuca, mesa de madeira vazada, bar com paredes cobertas de revistas, tipografia vernacular, engradado de Brahma e muita ferrugem e poeira.
“Uma das maneiras de compensar um baixo orçamento é pesquisar as melhores locações possíveis e saber usá-las de forma a valorizar o filme”, diz o diretor, que nasceu no interior de Goiás e estreou no longa-metragem com Comeback (2017). “A orientação para a direção de arte foi interferir o mínimo possível nas locações e tentar aproveitar a riqueza visual do interior, pouco retratada na nossa cinematografia.”
Oeste Outra Vez é um filme “de macho”. Na primeira sequência, a única mulher que vemos na tela desaparece em direção ao horizonte, enquanto o protagonista e seu rival saem no soco “por ela”. Essa figura feminina é uma imagem sem rosto, sem voz e sem ação. Ela é apresentada da maneira como o protagonista, um homem que sabe muito de amor, mas nada de amar, a enxerga.
Todos os personagens matam outros homens e tentam controlar mulheres. Mas o pulo do gato é que os diálogos, marcados por um ritmo poético hipnotizante, trazem um subtexto latente que indica haver alguma civilidade nessa vida de bangue-bangue.
“Gosto de usar os diálogos como elementos de linguagem. O roteiro é super-rígido, e é pensado a partir de uma métrica específica para criar uma partitura para os atores”, diz Rassi. “As nuances do diálogo servem para transmitir o comportamento desses homens que são ao mesmo tempo violentos e frágeis, incapazes de falar dos seus sentimentos. Eles repetem palavras sem chegar ao que de fato querem dizer.”
Rassi conta que, embora nos diálogos não seja afeito a improvisações, deu liberdade para que os atores (Ângelo Antônio, Babu Santana, Rodger Rogério, Daniel Porpino, Tuanny Araújo, Antônio Pitanga) participassem da construção dos personagens a partir de outros elementos, como figurino e cenografia.
O mundo do filme é aquele no qual os sujeitos assassinam, a sangue-frio, o namorado da ex-esposa de um deles, mas que perguntam ao colega de quarto se podem acordá-lo no meio da noite para conversar sobre os sentimentos despertados por essa situação. Ou seja, sob os comportamentos ancestrais de violência, há vislumbres de que, no fundo, não precisaria ser necessariamente assim.
Oeste Outra Vez recebeu os prêmios de melhor filme, melhor fotografia e melhor ator coadjuvante no Festival de Gramado e estreou nos cinemas brasileiros na quinta-feira 27.
Rassi sabe das dificuldades de se chegar a um público mais amplo, mas tem boas expectativas: “O desafio sempre é furar a bolha cinéfila e chegar no espectador médio. Mas estamos otimistas e esperamos que as críticas positivas, premiações e a atenção que o cinema nacional tem recebido por causa de Ainda Estou Aqui ajudem o filme a ter um alcance maior”. •
FICÇÃO SOBRE SI
Câncer com Ascendente em Virgem tem como ponto de partida uma história vivida pela própria produtora do filme
Por Ana Paula Sousa
As atrizes Nathália Costa, Suzana Pires e Marieta Severo interpretam os papéis da história contada no livro de Clélia Bessa – Imagem: Mariana Vianna
Dentre as várias habilidades de um produtor de cinema costuma estar a de farejar, a partir de um livro existente, um filme possível.
Pois no caso de Câncer com Ascendente em Virgem, que estreia na quinta-feira 27 nas salas do País, a origem do projeto está em textos escritos pela própria produtora do filme, Clélia Bessa.
O ponto de partida para o longa-metragem foi o blog Estou com Câncer, e Daí?, escrito em 2008, quando Clélia passava pelo tratamento de um câncer de mama.
Esses textos foram transformados em um livro homônimo, lançado este mês pela editora Cobogó (168 págs., 59 reais), e serviram de base para o roteiro do longa-metragem.
Na ficção, a produtora de filmes como Pluft (2022), Desenrola (2007) e Cartola: Música para os Olhos (2007) foi transformada em Clara, vivida por Zuzana Pires.
A personagem é uma professora de Matemática que, além de trabalhar na sala de aula, tem um canal no YouTube no qual prepara os estudantes para o ENEM.
Mas, assim como a autora do livro, Clara tem uma filha adolescente (papel de Nathália Costa e uma mãe (vivida por Marieta Severo) que, ao longo do tratamento, formarão com ela um trio imbatível.
Dirigido por Rosane Svartman, que trabalhou com Clélia em vários outros projetos, como Pluft e Desenrola, o filme tem o tom agridoce do livro.
É entre a praticidade, o pânico, a tristeza e um incontornável bom humor que a protagonista atravessa essa jornada que, no cinema (como na vida), promete ser de final feliz.
Publicado na edição n° 1355 de CartaCapital, em 02 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ferrugem, poeira e choro de corno’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.