Cultura

Felipe Neto no divã

O youtuber revê a fama construída como propagador e depois vítima do ódio e lamenta críticas a sua presença na Flip

Felipe Neto no divã
Felipe Neto no divã
Midas. O livro do influencer e empresário foi a maior pré-venda da Amazon no Brasil – Imagem: Chico Cerchiaro
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Aos 36 anos e com 80 milhões de seguidores entre Instagram, YouTube e TikTok, Felipe Neto não parece ter dúvida quanto a seu poder de influência. Pudera.

Seus vídeos têm 120 milhões de visualizações mensais e o livro que acabou de lançar foi a maior pré-venda da história da Amazon no Brasil e o maior lançamento da Bienal do Livro de São Paulo, encerrada no domingo 15.

Como Enfrentar o Ódio – A Internet e a Luta Pela Democracia, além disso, colocará Neto, que ficou famoso com vídeos de entretenimento voltados ao público jovem, na Festa Literária de Paraty , em outubro.

No mesmo dia em que o YouTuber e empresário falou com CartaCapital, por Zoom, o jornal O Globo publicou uma reportagem na qual mostrava que o convite havia deixado parte do setor editorial de cabelos em pé, sobretudo por considerar que seu livro não é literatura. Na entrevista, ele se disse surpreso com os ataques.

Como Enfrentar o Ódio. Felipe Neto. Companhia das Letras (376 págs., 69,90 reais) – Compre na Amazon

E olha que, a ataques, ele está acostumado. São eles, inclusive, o principal fio condutor de sua narrativa. No livro, Neto percorre sua trajetória tendo, como bússola, o ódio. “A origem do meu sucesso como comunicador está atrelada ao ódio e não há nada que eu possa fazer para mudar isso. Além de ter criado ódio, eu também havia sofrido, e muito, com ele”, escreve, referindo-se à perseguição que sofreu da extrema-direita a partir de 2019.

Naquele momento, o jovem que atraía haters por atacar a saga Crepúsculo ou o cantor Justin Bieber, passou a ser ameaçado de morte – desde então, anda com guarda-costas. Entre aqueles que responderam a processos por disseminar notícias falsas a seu respeito estão o deputado federal Carlos Jordy, a atriz Antonia Fontenelle e o empresário Luciano Hang.

“Sentir ódio é muito mais fácil do que receber ódio”, escreve, em tom de autoanálise, esse hábil comunicador que, agora, reconta sua história em texto.

CartaCapital: Você está acostumado às multidões, mas como foi vivenciar esse lançamento na Bienal?
Felipe Neto: Tenho uma história forte com a Bienal porque, em 2019, o àquela época prefeito (do Rio de Janeiro) Marcelo Crivela tentou censurar obras LGBTQIA+ no evento. Compramos então 14 mil exemplares de obras com essa temática e distribuímos de graça na Bienal. Esse episódio acabou sendo definitivo na minha vida. Há um antes e um depois da Bienal de 2019. A partir desse dia, passo a ser um alvo muito maior da extrema-direita. Então, foi muito bom poder voltar a uma Bienal do Livro e encontrar aquele salão abarrotado. Eu sabia que tinham sido distribuídas 450 senhas, mas não que ia ter gente se juntando em todos os cantinhos pra conseguir enxergar de longe. Tenho muito orgulho de ter ajudado a Bienal em 2019, e agora foi a Bienal que me abraçou para ajudar a divulgar o livro.

CC: O episódio da Bienal do Rio, relatado no livro, aparece também em uma declaração do editor Cassiano Elek Machado, que, na reportagem de O Globo, usa essa história para defender sua presença na Flip. Como você recebeu essa reportagem?
FN: Dá uma tristeza. Porque essas porradas que saíram agora em relação à Flip não estão vindo da extrema-direita. Quando surge uma porrada nova assim, eu penso: “Nossa, o que eu fiz pra essas pessoas?” Mas, de fato, acho que, nesse caso, sou uma sequela de algo. Há uma necessidade de representatividade, de ter autores que talvez precisem de mais força… Entendo de onde vem essa dor, embora não ache que eu não estar no evento favoreceria esse ambiente almejado. Minha presença se dá em função da obra escrita, e não apenas da minha popularidade. Vi pessoas dizendo que o livro foi escrito por um ghost writer, algo que considero até um elogio. Mas eu preferia que a pessoa lesse o livro e dissesse isso, achando que eu não seria capaz de escrevê-lo, do que presumisse isso de forma leviana. Também há, entre os críticos, pessoas que vêm do academicismo e tentam convencer os outros de que o certo é manter apenas as bolhas altamente intelectuais e não deixar entrar nada que seja popular. Acho que esse comportamento só afasta a população geral da literatura.

CC: Tem um momento no livro em que você cita que, quando era visto apenas como um youtuber ligado ao entretenimento, sentia certo preconceito dos jornalistas. Esse episódio indica que o preconceito ainda se mantém? Porque, pelo que você diz, ele o surpreendeu.
FN: Me surpreendeu porque achei que essa página já tinha sido virada. Houve mesmo um período em que os jornalistas tinham uma implicância muito grande com youtubers e as matérias a meu respeito eram muito negativas. Isso foi mudando, e hoje não tenho nenhuma reclamação em relação aos jornalistas. Mas nesse novo ambiente, o literário, estou vendo exatamente o mesmo comportamento. É uma pena. Li coisas ali que demonstram grande ignorância de pessoas que se consideram sábias, como alguém que disse que esse é um livro de aeroporto ou quem perguntou se iam convidar o ghost writer. Esse tipo de crítica debochada muitas vezes também vem de um lugar de frustração. Lembra muito o Não Faz Sentido, programa de quando comecei no YouTube e era um ator fracassado que odiava as coisas que eu considerava ruins. Eu utilizava o ódio para criar conteúdo. Sinto que as pessoas que tecem comentários maldosos sobre a minha presença na Flip estão nessa mesma posição em que eu já estive, de frustração. Espero que essas pessoas estejam lá e me façam perguntas, e que elas leiam o livro, para criticar a partir do que está escrito.

CC: Você começa o livro descrevendo o momento em que a Polícia Civil chegou à sua casa, levando uma intimação para você ir à delegacia, e escreve: Naquela noite, pouco dormi. Não por medo. De ódio. Você vem, nos últimos anos, ressignificando o sentido do ódio, mas também da sua história, tanto que também pontua sua origem social: Eu já era adulto quando a rua em que cresci foi asfaltada e, volta e meia, faltava água. Que papel teve a escrita no seu processo de compreensão a respeito dessas coisas?
FN: Em termos da minha vida pessoal, a escrita não teve papel crucial porque eu trato e tratei isso em terapia. Mas, nas partes em que revivo o que tive de passar no regime Bolsonaro, o livro serviu quase como um exorcismo. A cada página que ia deixando pra trás, eu sentia como se estivesse eliminando um demônio de dentro de mim. São histórias que não foram completamente contadas, que as pessoas não ficam sabendo dos detalhes, e isso causa uma angústia, porque quero que todo mundo saiba a verdade sobre as acusações absurdas, as associações criminosas que fizeram contra mim. Me sinto mais leve depois de ter escrito o livro. Espero que as pessoas, ao ler o livro, tenham uma compreensão maior sobre o próprio ódio e sobre o ódio digital.

“Entendo que as pessoas que tecem comentários maldosos sobre minha presença na Flip estão na mesma posição em que já estive: de frustração”

CC: Como você define hoje o seu lugar no que você chama de “trincheira digital”? Como você lida com o limite entre o reagir e o agir com quem o ataca?
FN: O ódio é fluido, líquido, ele o permeia. Além de estar na pessoa que o ataca, ele está em você. Na situação em que estou, nessa trincheira, ir para o embate significa combater a extrema-direita de maneira contundente. Como falo no livro, enfrentar o ódio não é virar o Gandhi ou o Dalai Lama, mas táticas podem ser adotadas.

CC: Ao contar a história da sua família, com o tio antipetista e a mãe que você achava que, se não ganhava melhor, era por incapacidade, você parece explicar os nossos dramas políticos pela desigualdade e pela falta de oportunidades, que gera também frustrações. Você desejava transmitir essa mensagem?
FN: Eu desejava criar, pelo menos, uma fagulha de interesse pelo assunto “diferença de classes”. E tento mostrar como fui, ao longo da vida, percebendo o quanto a ideia de meritocracia não se sustentava. Percebi isso olhando para minha própria mãe, uma pessoa sábia que foi incapaz de enriquecer. O que um coach da extrema-direita ensina? Que para você ser bem-sucedido basta lutar por isso. Mas, se você fracassar, a culpa não vai ser sua, e sim do governo, dos impostos, da burocracia. Mas se alguém que você conhece fracassa, a culpa é da pessoa. Conforme comecei a ter um maior entendimento das questões de classe, fui tendendo para a esquerda.

CC: Como tem sido fazer parte do Conselhão do governo Lula?
FN: Até agora, não tive muita participação. Já respondi algumas perguntas, mas gostaria de poder contribuir mais.

Metamorfoses. Da esq. para a dir., Felipe Neto na Bienal do Livro, em São Paulo, para lançar o livro; com a mãe, quando criança; e à frente de Não Faz Sentido, o programa que lançou no YouTube em 2010 e o tornou famoso – Imagem: Redes sociais/Youtube, Acervo Pessoal/Felipe Neto e Redes sociais/Bienal Internacional do Livro/SP

CC: Você já falou sobre o tema da regulação das big techs até na Unesco. Como você analisa o quadro de disputas regulatórias no Brasil?
FN: Tenho participado desse debate mais internacionalmente do que aqui. No Brasil, até por termos um Congresso extremamente conservador e reacionário, o debate não anda. Venho sendo chamado sistematicamente para participar de reuniões da ONU e da Unesco sobre regulação das big techs, mas aqui parece não haver espaço para se falar sobre isso. A população foi convencida de que um Projeto de Lei que tente regular as big techs é um projeto de censura. Mas, na verdade, é só por meio da regulação que se consegue impedir que um ministro do STF tenha tantos poderes na hora de tomar uma decisão relativa a uma plataforma ou a um perfil. Sob a ótica da direita, se eles querem tanto enfrentar esse poder do Alexandre de Moraes, eles que lutem por uma regulamentação. Só assim se estabelece o rito processual. Enquanto as pessoas não entenderem isso, o debate vai continuar paralisado e a gente não vai acompanhar o resto do mundo. A União Europeia já aprovou seu sistema regulatório – e o X está, inclusive, tendo de dar respostas sobre o cumprimento da lei. Aqui, para tratar do X, a gente teve que recorrer a uma lei analógica.

CC: Por que criou um Clube do Livro?
FN: Para fomentar a leitura no Brasil. A leitura é fundamental para a independência de um povo e o Brasil, infelizmente, lê pouco. A leitura mudou minha vida. Lemos, até agora, Fahrenheit 451 e Corpos Secos, que explodiu em vendas. Isso me orgulha: vender livros. E não ganho nada com a venda. O que a pessoa pode é tornar-se assinante e ir desbloqueando conteúdos conforme lê. A leitura de outubro será meu livro, mas, até agora, só tivemos ficções. A ficção é a arma mais poderosa do mundo contra a visão única. Só através dela a gente consegue criar um mundo. •

Publicado na edição n° 1329 de CartaCapital, em 25 de setembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Felipe Neto no divã’

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