Cultura

Fantásticas esquisitices

Obra mais conhecida do revolucionário China Miéville, ‘Estação Perdido’ é rica fonte para fãs de fantasia em busca de cenas inesquecíveis

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Lançada originalmente em 2000, a obra mais conhecida de China Miéville, Perdido Street Station, acaba de ser publicada no Brasil pela Editora Boitempo, com o título de Estação Perdido (R$ 89, 608 páginas; leia trecho).  A tradução de José Baltazar Pereira Júnior é notavelmente clara e fluente para um romance tão coalhado de coloquialismos e neologismos.

Trata-se da segunda obra de ficção do autor e a obra fundadora e o paradigma do subgênero da literatura fantástica definido como New Weird por Jeff e Ann VanderMeer no prefácio da antologia homônima da Tachyon. Um de seus atributos é combinar fantasia tradicional, horror e ficção científica à maneira da Weird Fiction popularizada pela revista estadunidense Weird Tales dos anos 1920 aos 1950, que teve H. P. Lovecraft como seu autor mais conhecido.

Outra é ter o caráter de urban fiction, expressão que em inglês evoca o lado obscuro das cidades, o submundo da marginalidade, da violência e da prostituição: um subgênero literário afim ao rap e ao funk que nasceu dos guetos e poderia ser chamado em português de “ficção das ruas”.

Um terceiro traço é a ambientação em um “mundo secundário” totalmente imaginário, em contraste com elementos fantásticos inserido em um cenário mais ou menos histórico ou realista, como é o caso da fantasia histórica e do steampunk. Por fim, ao contrário da alta fantasia tradicional, o New Weird repudia a idealização romântica para explorar uma espécie de realismo social no sentido de revelar através de um prisma fantástico as contradições, as incertezas, os conflitos e a corrupção do mundo industrial moderno.

Essa caracterização corresponde precisamente ao que Miéville fez neste livro e em suas sequências ambientadas em um mundo chamado Bas-Lag (talvez por ter muito de bas-fond). Seu propósito explícito foi criar uma literatura de fantasia capaz de romper com o modelo de O Senhor dos Anéis de J. R. R. Tolkien, que considera alienante e reacionário.

No cenário do romance, a cidade de Nova Crobuzon, os humanos parecem ser a maioria, mas pelo menos quatro outras espécies são suficientemente numerosas para ter seus próprios guetos: as khepris, que têm corpo de mulher, mas cuja cabeça é um grande escaravelho, os vodyanois, seres anfíbios semelhantes a grandes rãs, os cactáceos, que são cactos ambulantes de forma vagamente humana e os garudas, seres alados semelhantes a grandes águias com corpos humanoides.

Muitas outras, descritas ou apenas sugeridas, estão presentes em menores números na própria cidade ou em outras partes desse mundo e algumas são poderosas o suficiente para ter papel importante na trama.

Muitas dessas espécies aludem a mitos ou à literatura fantástica. Khepri era um deus egípcio com cabeça de escaravelho, os vodyanoi espíritos aquáticos do folclore eslavo e Garuda um benévolo deus-ave indiano. Mas a atitude de Miéville em relação a essas fontes é, em suas próprias palavras, “pirataria filisteia”. Desenvolve as características de cada espécie de maneira minuciosa e original, mas sem o menor respeito pela história de seu simbolismo.

As khepri, por exemplo, nada têm a ver com o deus egípcio do nascer do Sol e do renascimento: vivem em colônias e fazem suas acomodações e suas obras de arte com o próprio muco que segregam e convivem com machos que são simplesmente grandes escaravelhos sem inteligência. Habitam guetos de Nova Crobuzon como sobreviventes de um Holocausto meio esquecido que aniquilou sua espécie em seu continente natal.

Não se trata de um mundo pseudomedieval de espada e magia, como os de Tolkien, C. S. Lewis, Robert Howard e outros autores mais conhecidos do gênero. Nova Crobuzon é uma cidade industrial, uma mistura sombria, corrupta da Sprawl de William Gibson com Gotham City e a Londres vitoriana.

Há fábricas e máquinas a vapor, há robôs com cérebros mecânicos e há muitos humanos “refeitos”, com partes do corpo distorcidas, substituídas ou complementadas por implantes de partes de animais ou próteses mecânicas a vapor. Há trens suspensos e zepelins armados com canhões, bem como armas equivalentes a bombas atômicas, mas as armas mais usuais são mosquetes e pistolas de pólvora de um só tiro.

E há também magia, que não tem caráter sobrenatural nem é monopólio de místicos, mas uma força a ser estudada e manipulada por cientistas que combinam caldeiras, pistões e feitiços em recursos equivalentes a computadores e microscópios eletrônicos.

Essa mistura tem um resultado paradoxal. Passível de ser apreendida e usada pela razão científica, a magia torna-se uma força natural a mais, embora possibilite efeitos bizarros. Ao perder o caráter inexplicável e maravilhoso, deixa de ser propriamente “mágica”. Se certas histórias apresentadas como ficção científica, como Star Wars, são no fundo fantasia disfarçada, este romance de fantasia é ficção científica disfarçada, se podemos chamar assim uma história ambientada em um universo com leis bem diferentes das que conhecemos.

O autor vê na complexidade um valor em si mesmo. “Histórias, leis, culturas, estéticas – mundos – são colossais e colossalmente complexos. Não há como contar a história de um mundo todo. Não importa o quão detalhada seja sua linha do tempo, ou cuidadosamente ilustrado seu bestiário, não há como explicar tudo. (…). Sem problemas. Na verdade, isso é bom – é choque cultural. Dando certo, isto comunica que há um mundo além do livro, no qual ocorre a história, em vez de uma história com alguns acessórios de fantasia jogados dentro (…) É paradoxal tentar descrever um mundo que seja simultaneamente convincente e totalmente fantástico. Mas uma ideia une ambos os impulsos: o reconhecimento de que as coisas não são certinhas e arrumadinhas ou monolíticas, mas complexas e contraditórias, possíveis, constantemente surpreendentes e muitíssimo mais interessantes em virtude disto. Isto poderia descrever a melhor e mais estranha fantasia, bem como o mais duro retrato da realidade. É por isto que Kafka é um realista, e é por isto que os dois jeitos são possíveis.”

A proposta soa fascinante, mas na prática se revelou excessivamente ambiciosa. Neste romance, a complexidade de Bas-Lag aparenta menos a realidade contraditória de uma civilização ou mitologia real que uma colcha de retalhos interessantes, mas nem sempre bem costurados, assim como seus “refeitos”.

Cada detalhe é, em si mesmo, instigante e bem elaborado, mas o todo resulta sobrecarregado. As coisas são como são em seu mundo menos por razões lógicas ou simbólicas do que para exibir criatividade e buscar efeitos um tanto maneiristas de choque e estranheza. Falta necessidade e organicidade, tanto ao cenário quanto aos conflitos e à trama que nele se desenvolvem.

Embora Miéville diga admirar o caráter contraditório e surpreendente da realidade, descreve seus cenários sempre sob um prisma de monótona desesperança, corrupção e decadência, com uma adjetivação carregada e repetitiva – “fedorento”, “encardido”, “podre”. Também recorre com demasiada frequência ao Deus ex Machina, ou seja, à intervenção inesperada de forças externas à lógica do enredo.

Personagens são acompanhados e abandonados de maneira casual e os desenlaces anticlimáticos e abruptos. A trama lembra os acasos e improvisos de um role-playing game e até inclui três personagens secundários apresentados como típicos “aventureiros” do jogo Dungeons & Dragons, em busca de “ouro e experiência”.

É demasiado visível a mão pesada do autor a forçar situações violentas ou comoventes. Alguns leitores apontaram o caráter “vitoriano” do enredo, com muita razão. Há pormenores inconcebíveis em uma obra propriamente vitoriana, tais como sexo “pervertido” entre espécies ou com prostitutas “refeitas”, mas é curioso como o enredo por vezes soa puritano.  

Apesar de o autor descrever uma lei corrupta e uma moral hipócrita, as misérias dos personagens sempre são consequências de alguma transgressão tola, como nos contos e novelas moralistas do século XIX ou nos filmes de horror e catástrofe de Hollywood.

Se o autor pretendeu fugir ao maniqueísmo e à idealização da fantasia tradicional, este romance também não se mostrou tão inovador. Há personagens importantes que se mostram amorais e imprevisíveis – precisamente aqueles que desempenham o papel de Deus ex Machina –, mas os protagonistas são fundamentalmente simpáticos e bem-intencionados e enfrentam poderes políticos e econômicos inequivocamente maus e corruptos, que atuam com eficiência e perfeita coordenação contra uma subversão ingênua, amadora  e impotente.

É como se o autor quisesse nos convencer de que o poder é odioso, mas desafiá-lo é fútil. Por ideologia? Obviamente, não: o autor é literalmente um marxista de carteirinha. Filiado até 2013 ao Socialist Workers Party, principal partido trotskista britânico, rompeu após tergiversações da liderança sobre um caso interno de estupro e tornou-se um dos fundadores de um novo partido de esquerda chamado Left Unity.

É autor de Between Equal Rights: A Marxist Theory of International Law (2005), 375 páginas de respeitável crítica erudita do direito internacional à luz do materialismo histórico marxista. O problema é que, mesmo sendo revolucionário como teórico, foi conservador nesta prática ficcional, presa a esquemas lineares ação/consequência, bem/mal, ordem/caos, crime/castigo que só parecem complexos pelo abuso barroco da multiplicação, cruzamento e fracionamento.

Como literatura, as duas sequências também programadas para publicação pela Boitempo, The Scar (2002) e Iron Council (2004), mostram-se mais satisfatórias e bem acabadas. Com menos provocações, menos ideias soltas e menos piscadas de olho para fãs de RPGs e da literatura de fantasia, oferecem enredos mais consistentes e resultados mais proporcionais às intenções.  

Estação Perdido é de certa forma um grande rascunho experimental, embora tenha sido necessário como ponto de partida da série e do gênero e ainda seja um prato transbordante para o fã de literatura de fantasia em busca de cenas surreais e inesquecíveis, mundos estranhos, espécies fantásticas e teorias mágico-científicas como fins em si mesmos.


Leia trecho:

“Em pé diante de Lin estava uma imensa Refeita. Ainda tinha o mesmo rosto triste e belo da mulher humana que sempre fora, pele escura e cabelos longos e trançados, mas seu corpo havia sido suplantado por um esqueleto de mais de dois metros todo feito de ferro preto e peltre. Ela se apoiava sobre um tripé telescópico de metal rígido. Seu corpo havia sido alterado para o trabalho pesado, com pistões e polias, dando-lhe o que parecia ser uma força inelutável. Seu braço direito estava nivelado à altura da cabeça de Lin e do centro da mão de bronze estendia-se um arpão de aspecto maligno.

Lin recuou em terror atônito. 

Uma volumosa voz soou por trás da mulher de rosto triste.

– Srta. Lin? A artista? Você está atrasada. O sr. Mesclado está esperando. Por favor, queira me acompanhar. 

A Refeita deu um passo para trás, equilibrando-se em sua perna central e balançando as outras atrás, dando a Lin espaço o bastante para dar a volta ao seu redor. O arpão permaneceu imóvel. 

Até onde você pode ir?, Lin pensou consigo mesma, e adentrou a escuridão.

No fim do corredor totalmente escuro estava um homem cactáceo. Lin podia sentir sua seiva no ar, muito de leve. Ele tinha uns dois metros de altura, membros grossos, pesados. Sua cabeça quebrava a curva de seus ombros como um afloramento de rocha, sua silhueta era irregular, com nódulos de crescimento duro. Sua pele verde era uma massa de cicatrizes, espinhos de oito centímetros e minúsculas flores primaveris vermelhas.” 

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