Cultura
“Eu nasci homem, mas sou mulher”
Paloma, de Marcelo Gomes, é um filme sobre a igualdade dos corpos


“Eu nasci homem, mas sou mulher.” A frase, dita pela protagonista de Paloma, condensa o drama que tensiona o novo longa-metragem do pernambucano Marcelo Gomes, que despontou no cenário cinematográfico brasileiro duas décadas atrás, com Cinema, Aspirinas e Urubus (2005).
O filme, em cartaz desde a quinta-feira 10, acompanha o cotidiano de Paloma, uma mulher trans que tem um salão de beleza numa pequena cidade do interior. A cena de amor que abre o filme mostra Paloma e seu namorado, Zé, num momento sexual filmado sem erotismo.
Em seguida, imagens da protagonista nua no banho não buscam o exibicionismo, apenas naturalizam o corpo trans e convidam o espectador a superar os códigos binários de masculino e feminino.
A partir dessa apresentação simples e sóbria, o filme se detém pouco sobre detalhes de aspecto exterior, preferindo mergulhar na subjetividade. Os instantes de afeto entre Paloma e Zé seguem os códigos que todo mundo tem prazer de ver nas histórias sobre casais hetero ou homossexuais, independentemente do gênero.
A aparição de Priscila, a filha de 6 anos de Paloma, completa a estratégia de apresentar esta família segundo os mesmos princípios que a maioria associa à noção de gente comum.
O procedimento prolonga-se por meio de cenas que mostram a protagonista no trabalho em uma plantação de frutas. Ao lado das colegas, Paloma executa tarefas extenuantes, conversa, brinca, faz planos e, no final do dia, retorna para sua vidinha, tal como milhões de iguais.
Como a história com Zé vai bem, Paloma decide dar um passo maior, procurando o padre da pequena localidade para tentar realizar seu sonho: casar-se na igreja vestida de branco, véu e grinalda.
A resposta do religioso evoca a interdição do catolicismo. Gomes, porém, preserva a abordagem inicial. Ao invés de acentuar o tom do conflito entre desejo e lei, o diretor apenas delineia o impasse.
A partir das reações de intolerância, o diretor reforça o tom humanista de sua narrativa dramática
A opção é decisiva para fazer de Paloma um filme humanista em sentido pleno, em vez de uma obra cujo valor é determinado por seu interesse identitário. Paloma é, como a Cabíria de Fellini, abusada, maltratada e ameaçada. Mas persiste.
Quem nunca teve o sonho de encontrar seu par de sapato e acredita na felicidade? Quem não quer ter um trabalho honesto, pagar suas contas e viver em paz? Quem não gosta de compartilhar alegrias?
Paloma logo descobre não ter direito a nada disso, nem a poder ser quem ela é. Sua amiga Kelly é agredida e morta, Zé cederá ao confronto dos códigos machistas e a cidade, até então protetora, passa a tratá-la como pária. Por quê?
A partir das reações de intolerância, as opções feitas desde o início por Marcelo Gomes ganham força. Quando Paloma descobre estar sozinha e exposta às violências simbólicas e físicas, o filme já construiu e firmou nossa identificação com a personagem. Portanto, os ataques a ela ferem diretamente a sensibilidade do espectador, não importando o gênero com o qual cada um se reconhece.
Parte desse efeito se deve à contribuição de Kika Sena. Sua interpretação, premiada com o Troféu Redentor no Festival do Rio, não tem apenas as qualidades psicológicas e emocionais associadas aos desempenhos fortes. Kika dá a Paloma concretude por meio do corpo, da voz e do rosto.
Marcelo Gomes, por sua vez, não cede ao lugar-comum de mostrar o corpo trans de um ângulo somente transgressivo. Prefere colar nesse corpo, fechar o close em suas emoções, dar concretude ao seu lugar em meio a todos – e igual a todos.
É comum dizer que o cinema transporta a gente para outras dimensões, proporciona experiências insólitas ou inéditas. Paloma faz isso sem perder tempo com retórica. Apenas injeta o sentimento de exclusão no fundo de cada um e deixa a consciência agir. •
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PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1234 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE NOVEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ““Eu nasci homem, mas sou mulher” “
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