Cultura

Eu e Naná

A desproporção com que a vertente cultural ocidental ou americanoeuropeia se sobrepõe à índio-africano-ibérico-popular é de atordoante violência

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Guardarei duas lembranças e uma música de Naná Vasconcelos: estou no Recife e recebo a notícia de que ele deixara a cidade para ir morar no Rio (depois partiria para fora do país); a outra: apresentando-me no show de abertura do carnaval de Recife em 2014, ano em que fui o seu homenageado, recebo de Naná, que fora o do ano anterior, a placa da homenagem.

Posso dizer que as duas lembranças fazem parte do lado simbólico e afetivo que sempre guardarei dele; quanto à música, a carrego materialmente. Ela é uma presença viva e constante no cotidiano exercício da minha dança. Quando quero dar um passeio geral por ela recorro àquela sua música de uma só frase melódica, mas de ritmo inebriante.

Vai-se um músico brasileiro. Um músico que decantou sua obra – merecedora de inúmeros prêmios e de honrosa fortuna crítica – a partir de um rico ecossistema musical, sobretudo rítmico, que cada vez se nos foge, some, se esvazia, melhor dizendo, cada vez mais é condenado à não-existência.  

Que outros termos poderemos usar para dar ideia da acachapante sobreposição ou apartaide imposto ao imaginário cultural brasileiro? Acompanhem-me: num curto espaço de tempo tivemos o Rock in Rio, Paul McCartney, os Rolling Stones; ainda para os próximos dias e semanas estão programados o Lollapalooza, o Iron Maiden, Cold play, festival Tomorrowland “Brasil” e por aí vai…

Essas trupes aportam midiaticamente muito bem armadas. Chega a ser diabólica a engenharia e poder de invenção de suas máquinas de divulgação. Jornais nacionais televisivos e impressos, revistas, rádios, redes sociais diuturnamente se revezam em noticiar suas apresentações. E fato curioso: em tempos de crise lotam! Lotam.  

Li que o preço do Lollapalooza para os dois dias foi de R$ 800,00 contos! Lotam! Atentemos para o nome de algumas das poucas bandas “brasileiras” convocadas: Funky Fat, The Baggios, Dingo Bells… Não bastasse essa invasão (há outra palavra?), e quase tudo o que é tocado nos aeroportos, nas salas dos consultórios, nos programas das rádios, nas academias de esporte, nas trilhas das novelas, etc., de uma forma ou de outra, se intercomunica com esse outro imaginário.

O nosso, paulatinamente vai se esfumaçando, sumindo, mesmo em ano de comemoração do  centenário de nascimento do samba. Alguém por aí já ouviu falar disso? Já viram os nossos grandes jornais televisivos e impressos estarem cortejando esse fato? O samba vai dar em samba…

Assistindo vez por outra o programa de jornalismo das 22h da Globo News notei que ele é sempre concluído com um clipe de alguma banda americana, inglesa ou assemelhada. Ei!? Nesse ano não poderia ser dada uma colherzinha de chá aos nossos grandes compositores de samba? Não há nenhum deles por aí que tenha pedigree para dar o ar de sua graça no programa?

A verdade é que estamos ficando cada vez culturalmente mais alienados. Parece que aspiramos não ser o que somos. No mundo oficial da chamada música erudita coisa semelhante acontece. Pergunto: quantas orquestras sinfônicas subsidiadas pelo poder público ou empresarial existem no país? Talvez não fique longe de uma centena.

Quantos conjuntos de choro ou de música instrumental brasileira são subsidiados? Conheço alguns deles, como a Orquestra Retratos (cordas dedilhadas) e a Spok Frevo orquestra, cuja qualidade inovadora dos seus trabalhos é inversamente proporcional aos subsídios que recebem – quando os conseguem via algum edital de cultura. Informo: não sou xenófobo nem cultivo uma visão cultural etnocentrista às avessas!

Admiro muitíssimo a música de Stravinsqui, de Bach, de Mozart; acho um deleite escutar tanto sinfonias de Beethoven como canções de Bob Dylan, dos Beatles, etc. Mas o seguinte é esse: temos de ser bem mais a favor da música do Brasil, porque se não tivermos o zelo e cuidado que ela merece e precisa, em breve desaparecerá, ou se degenerará. Ou vai virar folquilore!

Vai-se Naná Vasconcelos, acompanha-o um país que se esvai, que se contorce, que sangra…e que não consegue se recompor. Não é simplesmente pelo fato de ser brasileiro que me determino a arrazoar da maneira como aqui estou hoje a fazer!

Essas considerações decorrem da percepção de que o grande armazém, o nosso exuberante caldeirão de representações simbólico-populares – pulsos rítmicos, formas e gêneros poéticos, modos de atuação teatral, etc. e etc. – não é devidamente legitimado, reconhecido. É cada vez mais proscrito, isso sim!

É uma lástima não conseguirmos dar ouvidos a escritores como Mário de Andrade, Darcy Ribeiro, Ariano Suassuna, para citar só os mais recentes dentre tantos outros que já se foram, pensadores que se empenharam em buscar entender e diagnosticar os nossos males e problemas culturais.

Não pensamos Brasil.

Será que nos contentaremos em ser eternamente o país da antropofagia (só se faz comer e não se digere, é…?), o país do carnaval, da geleia geral e do futebol que, felizmente, está deixando de sê-lo?

Somos tão ocidentais quanto não o somos. Até o presente momento o mundo da cultura e civilização ocidental tem dado as cartas. Não é difícil constatar que o seu sistema-mundo está longe de salvaguardar e preencher a totalidade das nossas necessidades humanas, sociais e culturais.

Se o modelo ocidental fosse exemplar será que estaríamos onde nos encontramos? Não falo só do país, falo do planeta. Refiro-me, em essência, a um modelo de civilização androcêntrico, patriarcal, o da Casa Grande!

A desproporção com que no país a vertente cultural ocidental ou americanoeuropeia se sobrepõe à índio-africano-ibérico-popular é de atordoante violência. Esses dois mundos culturais precisam conversar de igual para igual. Não há saída. A arte é apenas um dos avatares desse processo.

Esse é o recado que há tempos Naná já havia me passado. Continuarei a escutá-lo e através de sua música a senti-lo. Com meu corpo.

Embalado por sua música danço como quem ri e quem chora. 

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