Cultura

Está sabendo que o Jurandir morreu?

Tomei conhecimento da notícia, mas não sei quem ele é

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Pedestre que sou, continuo ouvindo frases soltas nas ruas e anotando todo dia  numa cadernetinha azul marinho da Muji, quiçá para algum uso futuro. Nos últimos dias foram três anotações.

– Leva tudo, menos as de porcelana.

– Eu não posso ir tomar café que ela vai atrás.

– Esse ano quem plantou batata ficou rico.

Na verdade, foram quatro frases. Três foram pra cadernetinha e uma nem cheguei a anotar porque pensei em escrever uma crônica.

– Está sabendo que o Jurandir morreu?

A frase foi ouvida na feira-livre da Lapa numa manhã de domingo, minutos depois daquela da batata. Uma senhora de cabelos bem branquinhos escolhia uma posta de cação na barraca de peixe quando a amiga chegou e sussurrou essa.

– Está sabendo que o Jurandir morreu?

A amiga já sabia sim e com um ar de tristeza e pesar apenas balançou a cabeça afirmativamente, triste e pesarosa. Não houve mais comentários, apenas um lamento mútuo ficou parado no ar.

Uma trajava saia cinza e blusa bege. Levava no braço direito uma sacola transparente que deixava à vista as batatas e as cebolas que tinha comprado na barraca em frente. A outra segurava firmemente uma carteira de couro vermelha e se firmava na alça de uma carrinho de feira já cheio de compras. Enxerguei laranjas, bananas, alface, inhame, tomate e um pacotinho de limão.

Devagar, as duas foram andando na minha frente e falando bem baixinho, tão baixinho que nem deu mais para ouvir nada. Nem mesmo quem era o Jurandir que morreu. Mas fiquei imaginando.

Com certeza ele tinha mais ou menos a mesma idade das duas ou, quem sabe, um pouco menos. Morava num daqueles sobradinhos da Lapa onde pessoas idosas moram há muitos anos, desde que o bairro só tinha sobradinhos e Getúlio era presidente. Fiquei pensando se Jurandir não estaria ali na feira no domingo passado comprando também uma posta de cação ou dois filezinhos de namorado. Talvez.

Fiquei pensando se Jurandir não seria aquele senhor que vejo na Rua Fábia sempre que caminho por ali com um balde na mão regando suas rosas e catando todas as folhas secas do jardim. Na minha imaginação, Jurandir era aquele que tomava sol todos os dias sentado na garagem do sobradinho verde lendo o Jornal do Bairro porque não gastava mais dinheiro com jornal, já que o do bairro chegava religiosamente toda semana e de graça na sua casa. Nele, Jurandir tinha as notícias que precisava. O horário das missas na Igreja São João Maria Vianney que fica na Praça Cornélia, a reforma do Hospital Sorocabana, a abertura de um novo restaurante a quilo na sua rua e a operação poda-árvore na Rua Clélia para salvar os fios.

Não quero nem pensar do que Jurandir morreu. Se de falência múltipla dos órgãos, AVC, tombo ou se morreu dormindo como um passarinho. As duas senhoras já iam longe na feira e eu ali com o passo reduzido só observando. Uma usava um mocassim marrom aparentemente muito confortável e a outra um sapatênis preto que me  pareceu também muito aconchegante para seus pés. As duas pararam na melhor barraca de frutas da feira para escolher mamão papaia, apertando um a um. Pareciam velhas conhecidas do vendedor que não se importou com elas amassando cada mamão papaia, todos maduros.

Acelerei o passo e ultrapassei as duas, em dúvida se tinha material suficiente para um crônica. Cheguei em casa um pouco agoniado, um pouco arrependido. Deveria ter parado e conversado qualquer coisa com elas, procurado saber ao menos quem era o tal Jurandir. O meu consolo foi pensar que domingo que vem a feira vai estar lá novamente no mesmo horário e no mesmo lugar. Quem sabe eu não reencontro as duas? O pior vai ser se encontrar apenas uma. Ou nenhuma.

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