Cultura

Escutar para compreender

PCC: Poder Secreto traz relatos sinceros e originais sobre o mundo do crime e as entranhas da organização

Retrato do Brasil. A série em quatro episódios, disponível na HBO Max, tem origem no livro Irmãos: Uma História do PCC. A direção coube a Joel Zito Araújo - Imagem: Redes sociais e HBO Max
Apoie Siga-nos no

Logo no início de PCC: O Poder Secreto, um original HBO Max, somos transportados, por meio da narração de um morador da periferia de São Paulo, para um jogo de futebol em Ermelino Matarazzo, no extremo leste da cidade. Torcedores e jogadores iam juntos para o campo, em um ônibus alugado. E iam todos armados. Quando saiu um gol, a comemoração foi acompanhada de uma saraivada de tiros.

Algumas sequências depois, outro jogo de futebol surge na tela. Dessa vez, dentro de um presídio em Tremembé, no interior do Estado. Em um depoimento prestado no processo que investigava o crime organizado, Geleião, o primeiro líder da facção, conta que o nome Primeiro Comando da Capital foi criado, originalmente, para um time de futebol do sistema prisional.

“Na periferia, ou você está na beira do campo ou você está na droga”, dirá um dos entrevistados, sem acrescentar que, muitas vezes, o futebol e o tráfico andam juntos. A forte presença do futebol está longe de ser um elemento aleatório da série em quatro episódios.

Quem quer que se dedicasse a conhecer de perto as trajetórias e as paixões daqueles que estiveram, ou estão, nas cadeias brasileiras, chegaria à bola. Assim como chegaria à fissura social, aos meninos criados sem pai e sem perspectiva de futuro e aos maus-tratos a que são submetidos os encarcerados. E foi a isso que chegaram os criadores da produção baseada no elogiado livro Irmãos: Uma História do PCC (Companhia das Letras, 2018), de Gabriel Feltran.

A direção coube a Joel Zito Araújo, que escancarou o racismo presente na dramaturgia em A Invenção do Brasil (2001) e mostrou a força musical do nigeriano Fela Kuti em Meu Amigo Fela (2019). “A população carcerária brasileira é majoritariamente negra. Os moradores das periferias são majoritariamente negros. ­Isso foi, sem dúvida, um elemento de atração para que eu entrasse no projeto”, diz.

Araújo tem 67 anos e nunca tinha trabalhado em uma produção tão grande. “Era tanta gente na equipe que nem sei te dizer quantas pessoas eram. Umas 50?”, arrisca, rindo. “A gente entrava com ­duas vans nas comunidades.” O tamanho da estrutura chegou a inquietá-lo na primeira entrevista, feita com Macarrão, condenado a 68 anos e persona non grata no PCC por ter delatado ex-companheiros. “Era o primeiro dia da equipe junto, então a gente ainda não se falava por telepatia, como acontece depois”, relembra Araújo. “Tinha a tensão natural do primeiro dia e a isso se somou o fato de a filmagem ser na cadeia.”

“Na periferia, ou você está na beira do campo de futebol ou você está na droga”, diz um personagem

A entrevista aconteceu na sala do diretor da penitenciária. Montado o set, Macarrão foi para lá levado, com algemas nos pulsos e nos cotovelos. “Chega aquele cara forte, que parece um Lex Luthor (­vilão da DC Comics). Perguntei se não podiam tirar as algemas”, relata. “Eles disseram: ‘Se você se sentir seguro…’. Ouvi-lo sem algemas era essencial para que demonstrássemos respeito por ele.”

Do encontro emergiu um relato sincero e original sobre a motivação para a entrada no crime, os sonhos que tinha para o PCC e as entranhas da organização. “Quando estávamos indo embora, ele disse: ‘Obrigado por ter me ouvido’. Ele estava emocionado”, conta Araújo. “Meu método é o da escuta. Me coloco um pouco na posição do psicanalista.”

Escuta e respeito talvez sejam as ­duas palavras que definam com mais precisão a abordagem da série. “Para mim, a verdade secreta do PCC era o respeito, mais do que os negócios”, diz, ao lado de ­Araújo, pela tela do Zoom, Daniel ­Hirata, um dos acadêmicos responsáveis pela pesquisa da produção. “Então, eles são muito sensíveis ao respeito.”

Hirata e os demais pesquisadores acompanham, há duas décadas, integrantes e ex-integrantes da facção, e abriram as portas desse universo para o diretor. “O Joel foi abraçado pelo carisma e pela capacidade de escuta”, diz ­Hirata. “A partir disso, emergiram temas como a relação entre o crime organizado e o Estado, o superencarceramento como sendo aquilo que produz o PCC, as relações entre pobreza e riqueza e as relações transnacionais do tráfico de drogas.”

Ancorada em entrevistas com quem entrou no crime, com moradores das periferias cujas vidas são atravessadas pelo PCC e com aqueles que, de dentro do Estado, são responsáveis por lidar com a facção, a série intercala essas vozes com uma segunda narrativa: a do rap. As batidas e os versos de grupos como Racionais MC’s e 509-E dão ritmo e rima à história que acompanha, de forma cronológica e pulsante, as transformações pelas quais passou a organização nos últimos 20 anos.

Mas o segredo que a série revela não diz respeito nem ao tráfico internacional de drogas nem às disputas sangrentas entre as lideranças. Os segredos revelados são, sobretudo, aqueles de ordem íntima e afetiva. E essas confissões, se dizem muito sobre cada um dos entrevistados, dizem mais ainda sobre a tragédia social brasileira. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1211 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Escutar para compreender “

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo