Cultura
Escrever sobre e sob a enfermidade
‘O Gaucho Insofrível’ foi deixado por Roberto Bolaño na sede da editora na véspera de sua última internação
Embora o chileno Roberto Bolaño, morto aos 50 anos, tenha obtido grande reconhecimento em vida, são as obras póstumas que, ao longo das duas últimas décadas, têm ajudado a cimentar seu nome no panteão dos grandes autores latino-americanos.
O Gaucho Insofrível, lançado agora no Brasil, abriu a leva de textos que são póstumos, mas que haviam sido garimpados pelo próprio autor. Diagnosticado com uma doença hepática em 1992, ele buscava, na fase final da vida, formas de manter a si e a família.
Como relata Joca Reiners Terron, tradutor do livro, o disquete que continha O Gaucho Insofrível foi deixado por Bolaño na sede de sua editora, em Barcelona, na véspera daquela que seria sua última internação hospitalar. Seu desejo, segundo Terron, era que a publicação lhe garantisse “alguma segurança financeira durante o período de convalescença que se sucederia ao transplante de fígado”.
O Gaucho Insofrível foi publicado em 2003, ano de sua morte. Não é, portanto, de surpreender que a enfermidade e a ideia de finitude perpassem os sete textos que compõem o volume. “Mas tudo chega. Os filhos chegam. Os livros chegam. A enfermidade chega. O fim da viagem chega”, escreve, em Literatura + Doença = Doença.
O Gaucho Insofrível. Roberto Bolaño. Tradução: Joca Reiners Terron. Companhia das Letras (152 págs., 69,90 reais) – Compre na Amazon
Nesse mesmo texto, Bolaño desenvolve, a partir de um poema de Mallarmé – que ele confronta com outro, de Baudelaire –, temas que perpassam sua criação: sexo, livros, solidão e violência. “Os livros são finitos, os encontros sexuais são finitos, mas o desejo de ler e de foder é infinito. Ultrapassa nossa própria morte, nossos medos, nossas esperanças de paz”, diz.
Também a literatura, enquanto tema, está sempre à espreita nas páginas de O Gaucho Insofrível. A escrita está no centro das tramas do divertido A Viagem de Alvaro Rousselot, sobre um escritor argentino supostamente plagiado por um diretor de cinema francês, e de Os Mitos de Cthulhu, um passeio pela literatura em língua espanhola.
É, contudo, no conto-título que o mundo mítico e por vezes anedótico de Bolaño se apresenta de forma mais completa e bem-acabada. O protagonista da história é Héctor Pereda, “advogado irrepreensível” de Buenos Aires que, ao ver a Argentina ter, em poucos dias, três presidentes e dez moedas em circulação, regressa ao pampa, para viver entre os gauchos. O texto é um desconcertante relato sobre as dualidades latino-americanas.
Do todo fica sobretudo a sensação de uma realidade fugidia e de um mundo que a linguagem, por mais brilhante que seja, não dá conta de capturar. Tudo que existe, parece querer nos dizer Bolaño, por meio de uma citação de Rimbaud, não passa de miragem. •
Publicado na edição n° 1300 de CartaCapital, em 06 de março de 2024.
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