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Escrever para não se afogar

César Aira, tido como um dos mais importantes autores vivos na Argentina, tem quatro títulos lançados simultaneamente no mercado brasileiro

Escrever para não se afogar
Escrever para não se afogar
Prolífico. O escritor, dono de um tom direto e irônico, escreveu mais de cem livros em seus 75 anos de vida – Imagem: Alejandra López
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“Fiz todos os meus trabalhos com o único propósito de compensar minha incapacidade de viver, e eles apenas foram capazes de ­impedir que eu me afogasse”, refletia César Aira, com seu típico tom direto e de rica ironia, ao completar 50 anos, na ­novela Cumpleaños.

A verdade é que César Aira, hoje com 75 anos, fez disso um verdadeiro modus vivendi, publicando, ao longo da vida, mais de cem livros – às vezes, de três a quatro por ano.

Em uma edição mais do que caprichada, a Fósforo lançou recentemente o volume 1 da Coleção César Aira (552 págs. no total, 129, 90 reais), que reúne quatro títulos. A coleção contará, ao todo, com 16 livros do escritor argentino a serem publicados ao longo de quatro anos, em tradução de Joca Wolff e Paloma Vidal.

O mais antigo deles, A Prova (1992), é uma novela frontal, que tem um início brusco e direto: “Quer foder?”, perguntam à jovem Marcia duas meninas punk chamadas Mao e Lenin. De pronto, ela nega, mas é vencida pela curiosidade. O local escolhido é um supermercado, no qual a dupla garante a própria tranquilidade amedrontando e queimando clientes e, dessa forma, bloqueando o espaço.

A referência histórica aqui é clara. A Argentina viveu, no fim dos anos 1980, uma hiperinflação destruidora, que trouxe a reboque uma agitação social que levou a saques de supermercados e de outros comércios. Foi então que se deu a interrupção adiantada do governo de Raúl Alfonsín e a chegada ao poder do controvertido Carlos Saúl Menem.

É esse clima de violência e revolta vivido pelo país que Aira evoca no romance. O contraponto é que a atitude vandalizada das meninas punk tem, no fundo, uma razão romântica: elas agem assim para fazer amor.

Outras chagas da época se fazem presentes no livro, como o empobrecimento acelerado da população; uma certa ideia de uma juventude nas ruas de que poderia não haver um amanhã – daí o fortalecimento de tribos confrontadoras, como a dos punks –; e a forte ideologia do consumismo gerada pelas políticas neo­liberais inculcadas pelo peronista ­Menem em seu princípio de gestão.

Outra marca da literatura de Aira que se deixa ver na pequena novela é a presença constante da classe média e de seus valores – sendo ele mesmo um representante dela.

Não por acaso, os cenários de seus livros são, em grande parte, sua cidade natal, Coronel Pringles, na província de Buenos Aires, e o bairro portenho de Flores, onde vive atualmente – ambos habitados por essa franja da população.

Outro título a destacar nesta primeira leva do pacote é O Vestido Rosa (1984), uma bem-humorada história de um vestido que deveria ser entregue a uma menininha recém-nascida, na conturbada Argentina do século XIX.

Nessa época, o governo local empreendeu um verdadeiro massacre da população indígena que habitava o sul do país antes do descobrimento. A chamada Campanha do Deserto era, à altura, apresentada como uma luta entre a civilização e a barbárie. E o exército era visto de modo heroico, como o vetor que livraria a Argentina desses povos tidos como selvagens.

O debate sobre a formação do país girava então em torno de como habitar e povoar o “deserto argentino”, que de deserto tinha muito pouco. Afinal de contas, nele habitavam diversas tribos indígenas.

O fato é que, no livro, o vestido da criança se perde, é roubado, passa pelas mãos de soldados, generais, gauchos e criadores de gado. Na narrativa, personagens e passagens reais são misturados à trama fictícia.

Coleção César Aira. Ao longo dos próximos quatro anos, a Editora Fósforo lançará, ao todo, 16 livros do escritor

No fundo da obra reside a crítica à invisibilidade à qual foi relegada a povoação indígena, algo que até hoje é uma questão numa sociedade que, em geral, se crê apenas branca e europeia, mas que, na realidade, é muito mais diversa.

Já em O Congresso de Literatura (1997), Aira faz um divertido exercício, encarnando um escritor e tradutor que, num congresso de literatura em Mérida, tenta roubar uma célula do mexicano ­Carlos Fuentes (1928-2012) com o objetivo de cloná-lo. A ideia surrealista seria a de criar um exército de intelectuais como o autor de A Morte de Artemio Cruz e Aura.

Por fim, a completar essa primeira fornada, está Atos de Caridade (2013), na qual três diferentes padres a cargo de uma paróquia levam adiante o projeto de construir uma enorme casa de caridade.

Acontece, porém, que o projeto se prolonga, a construção vai se tornando mais complicada, cheia de detalhes, enquanto a atenção deles para a pobreza – hoje um problema crônico no país, atingindo 55% da população – vai ficando em segundo plano.

São quatro livros que trazem distintas amostras de um prolífico escritor, hoje tido como um dos mais importantes ainda vivos na Argentina.

O conjunto é revelador de um autor que pode, em certa medida, parecer errático em suas escolhas, mas que, no fundo, é claramente movido por preocupações legítimas e escreve de modo espontâneo. •

Publicado na edição n° 1318 de CartaCapital, em 10 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Escrever para não se afogar’

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