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Enxergar-se negro

Para a escritora Eliana Alves Cruz, a pauta racial esbarra na identificação da população preta com a religião e a direita

Enxergar-se negro
Enxergar-se negro
“Estamos em um momento muito estranho”, afirma a autora carioca – Imagem: Ana Alexandrino
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Antes de poder dedicar-se exclusivamente à ficção, Eliana Alves Cruz, nascida no Rio de Janeiro e formada em Comunicação Social, trabalhou por muitos anos como jornalista. Hoje, aos 59 anos, é um nome em ascensão na literatura contemporânea brasileira e uma voz importante na discussão sobre a autoria e a representatividade negras nas artes. Além de escritora, Cruz é roteirista e foi indicada ao ­International Emmy Awards pela série Anderson Spider Silva (2023), da ­Paramount. Recentemente, lançou ­Meridiana, romance no qual conta a história de uma família que ascendeu socialmente e foi viver em um prédio de classe média. Esses novos personagens são o desdobramento de um fenômeno que ela própria descreveu em Solitária: o aumento da presença de negros na universidade. Embora tenha estreado na literatura olhando para o passado escravocrata, em obras como Água de Barrela e O Crime do Cais do Valongo, a escritora tem, desde ­Solitária, explorado as relações raciais no Brasil contemporâneo. Nesta entrevista a CartaCapital, a autora explica a origem de Meridiana e diz: se há uma utopia para a luta racial, é a de, um dia, os negros poderem viver sem medo.

“Minha utopia é viver sem medo”

CartaCapital: Qual foi seu impulso de criação em Meridiana? Mostrar negros em lugares diferentes daqueles ocupados pelos personagens de Solitária?
Eliana Alves Cruz: Meu projeto literário é investigar a vida negra em vários momentos da história, em vários territórios. E existe uma camada da população que está fazendo a passagem de um lugar de muita privação para um lugar mediano. As cotas para a universidade são de 2003, ou seja, têm 22 anos. Se pensarmos em quantos negros se formaram desde então, vemos que há muita gente nesse novo lugar, também uma encruzilhada. Ser o único negro em um prédio ou em uma escola é algo exaustivo. Eu vivi isso. O (personagem do) Ernesto tem muito do meu pai, inclusive. Embora um romance seja sempre um amálgama e todos os personagens sejam, em algum momento, diametralmente opostos a mim, tem muita coisa minha no livro. Mas meu ponto de partida concreto foi a Mabel, a filha da empregada em Solitária. Pensei no que seria a vida dela depois da conclusão do curso de Medicina. Vamos imaginar que ela se casou com outro personagem, o filho do zelador, e foi morar na Tijuca, no Rio de Janeiro, ou num bairro de classe média em São Paulo, Recife ou Salvador. O que será a vida dos dois naquele universo? Investigar essa existência me daria a possibilidade de entender nossas dinâmicas sociais, olhar para o que nos adoece e questionar por que a gente precisa tentar moldar-se para se encaixar. Quando um negro chega a determinados lugares, parece haver um desejo de nos dizerem: “Nós somos uma coisa, e você é outra”. E isso é também violento. Quis contar a história de uma família que faz esse percurso.

Meridiana. Eliana Alves Cruz. Companhia das Letras (184 págs., 69,90 reais)

CC: Nós nos propusemos, nesta edição, a pensar sobre a utopia, ou sobre o fim dela. A utopia dos Yanomami, por exemplo, é que nós, não indígenas, escutemos o lamento da floresta. Existe uma utopia da luta racial?
EAC: A Nina Simone dizia que ser livre é não ter medo. Então, minha utopia é justamente essa: viver sem medo. E quando falo sem medo, não é sem medo necessariamente da violência urbana. É sem medo­ do próximo, sem medo de ser visada e agredida – verbalmente, simbolicamente ou literalmente. Então, minha utopia é me livrar do medo de existir. É conseguir pisar em um aeroporto sem ser o alvo principal da revista aleatória. É viver sem essa constante tensão no ar.

Solitária. Eliana Alves Cruz. Companhia das Letras (168 págs., 74,90 reais)

CC: Na literatura brasileira contemporânea, as cotas raciais, exatamente pelo que a senhora falou no começo da nossa conversa, foram tematizadas em alguns livros. Lembro de De Onde Eles Vêm, do Jeferson Tenório, e de A Construção, de Andressa Marques. Acho que essa presença das cotas na ficção reflete a profundidade do impacto por elas causado. Há alguma pauta racial que, hoje, tem esse lugar que as cotas tiveram e que una a esquerda?
EAC: A gente está num momento muito estranho, né? O fato de termos uma parcela tão grande da sociedade voltada à religião, que leva à busca pelo voto evangélico, tem emperrado muita coisa. Me parece que a pauta racial esbarra nessa busca pelo diálogo com gente identificada com determinadas agendas que são caras à direita. E isso não é algo exclusivo do Brasil. A gente vê o governo Trump censurando obras da Maya Angelou. Temos notícias de que 10 mil livros foram censurados em instituições públicas norte-americanas e vemos um museu da história afro-americana tendo obras devolvidas para recontar a história de um jeito menos danoso para a população branca. Então, depois do movimento Black Lives Matter, a gente vive um momento de retração no mundo. E no Brasil não é diferente. É desagradável repetir isso, mas, como diz a Sueli Carneiro, entre a esquerda e a direita, a gente continua preta. Porque nosso corpo é o primeiro a ser rifado e nossos direitos são os primeiros a serem descartados na mesa de negociações. Ao mesmo tempo, nas eleições, nossos votos interessam, e temos toda uma população negra cooptada por igrejas. E, olha, não podemos esquecer que, nas comunidades periféricas, muitas mães solo encontram na igreja um socorro que o Poder Público não lhes dá. As igrejas são, além disso, um ambiente de sociabilidade. O que temos para ensinar para essas pessoas? Vivemos nas nossas bolhas e temos uma visão muito irreal de mundo. A esquerda branca precisa entender que também é, às vezes, racista. Acho que todos ainda deviam se perguntar, com a cabeça no travesseiro, e não nas redes sociais, onde guardam seu racismo. E aí responder a essa pergunta com sinceridade e tentar mudar.

O movimento nos EUA não redundou em avanços. “Um momento de retração” – Imagem: iStockphoto

CC: A senhora mencionou a política eleitoral e agora, ao dizer que devíamos nos perguntar onde guardamos nosso racismo, me leva a pensar de novo na pauta racial. Ela é tradicionalmente de esquerda, embora os negros sejam de todos os espectros políticos. Que paradoxo é esse?
EAC: O racismo é algo muito doloroso. Não é fácil reconhecer que não é querido pelo seu país. Não é fácil reconhecer que a violência recebida se dá em razão daquilo que você é. Então, esse estágio da negação é uma realidade, inclusive conceitualmente. Quem é negro no Brasil? Parte da população parda e preta que compõe, para o IBGE, a população negra, não se enxerga como negra. Ou seja, temos muita gente na fase que a Angela Davis define como a do “tornar-se negro”. Quem está nessa fase não se reconhece como parte daquele grupo, defende a meritocracia e acredita que, se não prosperar, a culpa é dele. E aí temos o cara se esfalfando no Uber, achando que vai ser super-rico e, por isso, é contra a taxação do super-rico. Ele não leva em consideração que é um cara preto, da periferia, barrado em todos os espaços. Essa falta de reconhecimento é uma realidade no Brasil, e isso, obviamente, interfere no voto.

“Como diz a Sueli Carneiro, Entre a esquerda e a direita, a gente continua preta”

CC: O que pode a ficção diante disso?
EAC: A literatura, em particular, e a ficção, de modo geral, têm o poder de fabular vidas possíveis, passadas, presentes e futuras. A fabulação tem um poder de fagulha porque, ao mesmo tempo que não pode nada, ela pode tudo. Tenho ouvido, nestes anos, depoimentos incríveis de gente que, a partir de Solitária ou Água de Barrela, pode elaborar melhor a própria realidade e, de alguma forma, transmutá-la. Há um interesse em se dizer que a literatura e a arte não podem nada. Podem, sim. Se não fosse assim, não incomodariam tanto, né? •

Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Enxergar-se negro’

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