Cultura
Entre notas e intempéries
A Orquestra Filarmônica de Minas Gerais chega aos 15 anos com grande prestígio e com o desafio de recuperar o público perdido durante a pandemia


Foi com a Abertura Festiva, de Shostakovich, e a estreia mundial de uma obra encomendada ao compositor paulistano Leonardo Martinelli que a Filarmônica de Minas Gerais deu início, na quinta-feira 2, à Temporada 2023, que marca os 15 anos da orquestra.
Embora no meio caminho tenha havido pedras, a orquestra conseguiu firmar-se como um conjunto estável, que realizou mais de 1,1 mil concertos e gravou dez CDs – um deles, dedicado à obra de Almeida Prado e gravado pelo selo Naxox, foi indicado ao Grammy Latino. Conseguiu ainda concretizar o plano de ter sede própria, a Sala Minas Gerais, inaugurada em 2015.
“Um projeto dessa natureza, e com tamanha estatura, não atravessa esses anos todos sem passar, naturalmente, por desafios de ordem econômica e política”, diz Fábio Mechetti, o maestro que, em 2008, deixou a Orquestra Sinfônica de Jacksonville, nos Estados Unidos, para tornar-se diretor artístico e regente titular da filarmônica mineira. “Nesse período, a orquestra foi acolhida pelo povo mineiro e cresceu muito artisticamente.”
O projeto teve como padrinhos o então governador Aécio Neves e seu vice, Antonio Anastasia. A inspiração vinha de um dos símbolos fortes da gestão do PSDB na cultura: a Fundação Osesp e a Sala São Paulo. Assim como a orquestra paulista, a filarmônica deveria apoiar-se em um tripé financeiro: repasses do governo do Estado; patrocínios e recursos incentivados; bilheteria e assinatura. Em 2022, a verba estatal foi de 17,5 milhões de reais e as demais fontes de recursos somaram 36,5 milhões de reais.
Ao longo desses 15 anos, o apoio do Estado, ainda que tenha sido sempre mantido, não se deu – e não se dá – sem sobressaltos. A própria Sala Minas Gerais chegou a receber alfinetadas do governador reeleito, Romeu Zema (Novo). “Não é construindo um edifício fenomenal para uma elite frequentar que estaremos fazendo cultura”, afirmou. “A cultura é do povo e não de uma elite que frequenta uma monstruosidade que custou milhões.” O projeto da sala foi colocado de pé pelo tucano Anastasia (2010-2014), mas sua inauguração acabou por se dar no governo do petista Fernando Pimentel, no início de 2015.
“A pressão é sempre grande e costuma ser econômica”, diz o regente-titular
“A pressão é sempre grande. E costuma ser econômica”, diz, desviando-se dos meandros políticos, Mechetti. “Nos mantemos com praticamente um terço do valor de repasse recebido do governo de SP para a Osesp, com a expectativa de termos uma programação equivalente. Depender tanto dos patrocinadores para sustentar a folha de pagamento é um grande desafio. E isso tem implicações artísticas.”
A orquestra possui 89 músicos – dentre eles, há 28 com 15 anos de casa e 16 estrangeiros. O plano inicial era, porém, que até 2015 o grupo fosse composto de 104 integrantes. “Muitas vezes, não se tem a condição de dar aos músicos os revezamentos necessários, para que possam ter um desempenho compatível com a expectativa de qualidade de nossas apresentações”, pondera o regente.
A exemplo do que aconteceu com boa parte das instituições culturais brasileiras, a orquestra ainda enfrentou, nos anos recentes, dificuldades com o manejo da Lei Rouanet, entravada pelo governo Bolsonaro. “Até 30 de dezembro do ano passado, os planos anuais (das instituições) não tinham sido aprovados pela Secretaria Especial de Cultura. Graças a um esforço do presidente do Conselho, conseguimos”, diz Mechetti. “Foi uma angústia.”
O maestro aproveita para pontuar que a Lei Rouanet precisa e pode ser revisada, mas que não se deve perder de vista que o mecanismo de incentivo não existe para ser uma fonte de financiamento para tudo e todos: “A lei deve servir àqueles que, sem ela, não teriam condições de fazer cultura dentro de regras de mercado”.
Outro desafio da orquestra – comum a várias manifestações culturais – tem sido a reaproximação do público. Como se sabe, a mudança de hábitos de comportamento e de consumo trazida pela pandemia teve implicações na presença do público em teatros, salas de cinema e orquestras.
“A música é a expressão de um ser humano para outro ser humano. Sem a presença física, seja do músico, seja do público, muito se perde. Mas muitas pessoas se acostumaram aos concertos online, e algumas não voltaram”, diz Mechetti. “No pós-pandemia, as assinaturas caíram cerca de 40%. As pessoas continuaram comprando assinaturas, como sinal de apoio à orquestra, mas não vinham aparecendo na mesma proporção.” Os números de 2023 já indicam, no entanto, uma retomada. No último fim de semana, nos concertos celebratórios dos 15 anos, a sala estava lotada.
Hoje, 70% dos assinantes têm mais de 55 anos e 20%, menos de 30 anos. O público virtual é, em média, mais jovem que os assinantes. Mesmo a orquestra sendo, como instituição, muito conhecida no estado – inclusive porque faz concertos pelo interior –, Mechetti reconhece que é forte a percepção de que a música clássica destina-se a uma elite.
“Também é comum que se confunda excelência com elitismo”, diz. “Uma orquestra, obviamente, não é algo de cunho extremamente popular. O consumo de música clássica exige certa predisposição, mas isso se estende para um certo tipo de literatura também, como o Guimarães Rosa, por exemplo.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1249 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE MARÇO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Entre notas e intempéries “
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