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Entre a verdade e invenção

Histórias Reais, da fotógrafa, artista e escritora francesa Sophie Calle vem sendo ampliado ao longo de três décadas

Entre a verdade e invenção
Entre a verdade e invenção
Experimentos. Nas fotografias, quase sempre acompanhadas de breves narrativas, Sophie mistura o banal ao inusitado, valendo-se às vezes do humor – Imagem: Acervo Sophie Calle
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O que esperar de um livro intitulado Histórias Reais quando sua autora é a fotógrafa, artista visual e escritora Sophie Calle? Quem conhece algo do ousado trabalho dessa inquieta francesa de 72 anos provavelmente sabe que a encenação da intimidade e um certo voyeurismo estarão presentes.

Desde os primórdios de sua carreira artística, Sophie tensiona o conceito de “real”. Há sempre uma fronteira imprecisa entre o documental – as fotografias, os minuciosos registros escritos, os programas performativos que estabelece – e uma perspectiva deliberadamente construída, nada neutra, um jogo de cena proposital.

Histórias Reais traz 66 imagens, cada qual acompanhada por uma breve narrativa – ou serão os textos a inspirar a escolha das fotos? Lançado originalmente em 1994, na França, o livro já foi reeditado e ampliado oito vezes. Chegou ao Brasil pela primeira vez em 2009 e ganha agora esta segunda versão pela Relicário, que inclui novos relatos.

Sophie é uma cativante contadora de histórias – próprias, alheias ou inventadas – e não se limita a narrá-las por meio de uma única linguagem. A fotografia aparece geralmente combinada à escrita, em composições perspicazes e com um toque de humor. No livro, retratos da artista misturam-se a registros ora cotidianos, ora inusitados.

Uma das histórias narradas é sua gênese como artista, que ela atribui ao incentivo do pai, o oncologista e colecionador de arte Robert (Bob) Calle. A imagem que acompanha o texto exibe uma lápide na qual está gravada a palavra father (pai) – Bob morreu em 2015.

“Eu tinha 26 anos, estava perdida”, escreve. “Para evitar seu olhar de pai com a minha vida ociosa, mas sem saber para onde ir, só para ir a algum lugar, comecei a seguir ao acaso os passantes na rua e a fotografar esses desconhecidos cujos caminhos eu tomava emprestados.” Bob adorou a ideia, o que lhe deu confiança para continuar. “Mas, quando morreu, e eu perdi o olhar dele, senti vontade de parar.”

De fato, o primeiro experimento criativo de Sophie Calle foi o registro fotográfico de transeuntes anônimos, ­Filatures Parisiennes (1978–1979). No entanto, o trabalho que marcou o início de sua carreira artística foi Les ­Dormeurs, no qual durante oito dias de 1979 ela fotografou conhecidos ou desconhecidos que convidava para passarem oito horas em sua cama. A experiência resultou numa instalação com imagens e textos exibida na Bienal de Paris em 1980, tornada livro em 2001.

Histórias Reais. Sophie Calle. Tradução: Marília Garcia. Relicário. (152 págs., 89,90 reais)

Seguiram-se outros trabalhos que também partiram de uma proposta performativa com premissas concretas. Por exemplo, seguir e fotografar um único homem durante dias, inclusive durante uma viagem dele a Veneza, documentando tudo meticulosamente. Ou trabalhar como camareira em um hotel em Veneza durante alguns meses e fotografar os pertences e as camas desarrumadas dos hóspedes, registrando detalhes e impressões.

Em 2009, o Sesc Pompeia, em São Paulo, e o Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador, receberam a exposição ­Cuide de Você (2007), com registros em texto, vídeo e foto de mais de uma centena de mulheres que, a convite de Sophie, analisavam e interpretavam um e-mail de rompimento amoroso recebido pela artista.

Naquele mesmo ano, durante a Festa Literária Internacional de Paraty, ­Sophie participou de uma mesa de debates justamente com o autor do fatídico e-mail, o escritor francês Grégoire Bouillier, seu ex-namorado.

Rastros de experiências afetivas e artísticas também aparecem em Histórias Reais, confirmando outra característica das obras da artista: a obsessão detetivesca pelos vestígios deixados por alguém (ou por ela mesma). Como se a ausência pudesse ser compensada por aquilo que a fotografia captura e a palavra fixa.

No livro, Sophie permite-se experimentar muitas versões de si. Alguns dos relatos mais bonitos tratam da morte de sua mãe, Monique Szyndler, em 2006. Em um deles, a artista transcreve trechos dos diários maternos. E descobre um caderno não datado, quase em branco, com anotações sobre o funcionamento do videocassete. Nele, há a frase: “Morri de bom humor”.

Histórias Reais pode ser tanto um deleite para os fãs da artista francesa quanto um belo cartão de apresentação para quem não a conhece. Embora não importe quanto de factual ou de invenção há nos breves textos, podemos intuir, citando o poeta Manoel de Barros, que “só dez por cento é mentira”. •

Publicado na edição n° 1391 de CartaCapital, em 10 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Entre a verdade e invenção’

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