Cultura

assine e leia

Entre a utopia e a distopia

O potente romance Tchevengur, de 1920, investiga as contradições e os avanços de uma sociedade comunista

Entre a utopia e a distopia
Entre a utopia e a distopia
A edição brasileira tem ilustrações de Svetlana Filipova
Apoie Siga-nos no

Tchevengur acordava tarde, seus habitantes descansavam de séculos de opressão sem conseguir descansar completamente. A revolução havia conquistado sonhos para o distrito de Tchevengur e feito da alma a principal profissão”, comenta o narrador do romance de Andrei Platônov que enfim ganha uma tradução brasileira, assinada por Maria Vragova e Graziela Schneider.

Escrito no fim dos anos 1920, ­Tchevengur só foi publicado na íntegra em 1978, em inglês, e, na União Soviética, em 1988. Na obra, Platônov – que morreu em 1951, sem nunca ter visto seu livro publicado – investiga, às vezes de forma satírica, muitas vezes de forma melancólica, as possibilidades de uma utopia comunista.

A construção do romance transita entre a utopia e a distopia, que são, afinal de contas, duas faces de uma mesma moeda – tudo depende de quem e de onde se observa, e o autor é consciente o bastante para saber que qualquer experiência sociopolítica tem aspectos positivos e negativos.

Um dos personagens centrais do romance é o órfão Aleksandr Dvánov, cujo pai se matou por afogamento. Criado por um mecânico de família numerosa e também muito pobre, o menino se vê obrigado, assim que está um pouco mais crescido, a sair daquela casa para trilhar o próprio caminho. Quando entra no partido bolchevique, vê outra realidade descortinar-se – embora ele mesmo não tenha muita certeza do que é aquilo tudo.

Dvánov é um personagem forte e repleto de nuances. Colocado como centro da consciência da narrativa, ele é uma figura desconfiada, para quem a realidade das contradições da experiência comunista funciona como descoberta do mundo real. Dvánov é, nesse sentido, bem diferente de outra figura importante para o romance: Stepán Kopienkin, uma espécie de Dom Quixote bolchevique, cujo cavalo se chama Força Proletária e cuja paixão platônica é Rosa Luxemburgo, que já havia morrido. Ao contrário do outro personagem, ele é sonhador e mantém-se cego para os problemas do comunismo – por isso, sua decepção também pode ser maior.

TCHEVENGUR. De Andrei Platônov. Tradução: Maria Vragova e Graziela Schneider (Arts e Vita, 584 págs., 102 reais)

Tchevengur, o lugar inventado pelo autor, traz em si diversos momentos e episódios inspirados na história russa e soviética. Pode-se dizer que a narrativa é construída em fragmentos cronológicos conectados por uma ideia: a da possibilidade do comunismo. Embora Dvánov funcione como fio condutor da narrativa – ainda que nem sempre esteja em cena –, ­Tchevengur não é um romance com uma figura central única. Vários personagens têm seu momento no proscênio, ­tornando-se, eventualmente, protagonistas. A partir deles, Platônov faz um retrato do coletivo e do embate entre ideologia e utopia.

Para Dvánov, a revolução é vista quase como um fenômeno natural. “É mais fácil que a guerra. As pessoas não se metem em assuntos difíceis: quando o fazem, é porque algo não vai bem…”. E como muita coisa “não vai bem” em Tchevengur – o lugar, não o livro –, uma guerra se faria necessária. Mas não seria este um preço alto demais a se pagar pela utopia?

O livro, após ser revelado, foi se ­transformando em clássico recente, e é visto como uma pequena joia da literatura do século XX. Seu lançamento em português é um fato a ser celebrado. A ótima tradução é complementada por uma série de notas de rodapé com referências que ajudam na compreensão, acima de tudo, do contexto da narrativa. A edição traz ilustrações da artista e cineasta cazaque ­Svetlana ­Filippova, que estão em perfeita sintonia com a beleza melancólica da prosa de Platônov. •


VITRINE

Por Ana paula sousa

“Se nos quisesse perfeitos, nos fizesse perfeitos.” Com essa epígrafe, Carla Madeira, a autora de ficção que mais vendeu livros no País em 2021, inicia Véspera (Record, 280 págs., 49,90 reais).­ Tanto nos temas e feminilidades que o atravessam quanto no tom, o romance reverbera o sucesso Tudo É Rio.

Composto de boas frases e relatos que roçam biografia e obra de artistas como Anish Kapoor, Richard Serra e Donald Judd, O Que Fazem os Artistas (Cobogó, 128 págs., 58 reais) é um livro que se lê como quem passeia por uma exposição de arte contemporânea e se deixa envolver por sentidos nem sempre alcançáveis.

As memórias de Simone de Beauvoir contêm as memórias de Sartre, do feminismo, da literatura e da filosofia. Seu Balanço Final (Nova Fronteira, 504 págs., 99,90 reais), escrito no crepúsculo da existência é, portanto, além de um balanço, um testemunho de um tempo e de um tipo de olhar sobre o homem e o mundo.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1191 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JANEIRO DE 2022.

CRÉDITOS DA PÁGINA: RECORD, COBOGÓ, NOVA FRONTEIRA E ARTS E VITA

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo