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Entre a fé e a distopia

Na mesma semana de sua estreia no cinema como um pastor alheio à Bíblia, Marcelo Adnet tenta processar os ataques de Brasília e o que chama de ‘revisionismo da civilidade’

Entre a fé e a distopia
Entre a fé e a distopia
Imagem: Peter Wrede
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Em Ondas da Fé, comédia dramática em cartaz desde a quinta-feira 12, Marcelo ­Adnet dá vida a Hickson, técnico de informática e locutor de telemensagens que, graças ao talento para se comunicar, arruma emprego em uma rádio evangélica e torna-se pastor.

Quem teve a ideia para o personagem foi o próprio comediante. Em 2014, ele procurou Augusto Casé, produtor de comédias de sucesso, como Muita Calma Nessa Hora (2010) – protagonizada por Adnet – e propôs um filme sobre a fé evangélica. “Depois daquele personagem superpaulista, coxinha, tech, eu queria fazer um filme mais reflexivo”, diz . “Gosto de tentar saber o que as pessoas pensam. Já vi muito canal terraplanista.”

Adnet conversou com CartaCapital na segunda-feira 9. Ainda estava atônito com as cenas da véspera, em Brasília. Admitiu, porém, que o estado de espanto não chega a ser algo incomum para quem vive no Brasil: “Quantos momentos de normalidade tivemos na nossa história?”

É também por esse quase permanente estado de absurdo que, embora tenha sido idealizado oito anos atrás, Nas Ondas da Fé permanece atual. “Talvez até mais, né?”

CartaCapital: Por que fazer um filme sobre esse tema?

Marcelo Adnet: O filme nasce do meu desejo de não ficar isolado dentro do Brasil. A gente vive um pouco uma vida blindada, entre muros, né? Somos, no geral, uma elite empobrecida, esvaziada e pouco conectada com a realidade. Alguns de nós se interessam mais pelo outro lado do muro. Outros têm fobia. É difícil atravessar esse muro porque o mundo está construído para isso. O fenômeno evangélico é algo que foi crescendo muito do outro lado­ do muro e a gente, deste lado, só ouve falar e vê vídeos para confirmar nossas expectativas sobre um estereótipo. As elites não compreendem o fenômeno da fé. E eu tinha atração pelo lado show, pela ideia de um pastor que fosse mais um show man do que alguém ligado à Bíblia ou à liturgia.

CC: Quando quer mostrar seu talento, Hickson narra um jogo de futebol. Tem algo de você nele

MA:Se tivesse nascido quatro bairros para cima, para o norte do Rio, eu poderia ser esse cara. Meu pai era músico e minha mãe, figurinista freelancer. Ela trabalhou com a Angélica no Milk Shake, na Rede Manchete. Fui na plateia do programa e tudo (risos). Eu era um garoto tímido e introvertido. Sempre soube fazer imitações, e queria ser radialista. Acho fácil entender a jornada do Hickson. No lugar dele, a gente também aceitaria aquele emprego e iria atrás de um salário mais gordo, para tirar o ventilador e botar um ar-condicionado em casa. No fundo, tá todo mundo esperando o bonde passar para pegar a oportunidade. É comum as pessoas entrarem no mundo evangélico, neopentecostal, por ver nisso uma oportunidade. E também tem, é claro, o oportunismo. O filme não ri da fé. Ele é ácido com as lideranças humanas dessas instituições. Mas já saiu por aí: “Adnet vai zombar de fiéis”. Eles não param.

“Esse episódio tem fragmentos terríveis. Ao mesmo tempo, uma pessoa rezando para um pneu tem um valor cômico. É como o patriota do caminhão.”

CC: Os bolsonaristas te detestam, né? Eles também reclamaram de ‘Que Doha É Essa?’ (quadro do programa Central da Copa) ou aí se divertiram?

MA: A Copa politiza menos. Mesmo assim, eles entravam nas redes para comentar: “É o mais sem graça da história. Bolivariano. Seu ladrão da mamata da ­Rouanet!” Aquela coisa que parece gerada por uma inteligência artificial – de certa forma, é (risos). Mas a Copa foi o momento de fazer um humor despolitizado. Estava todo mundo precisando de humor. Sou muito politizado, mas, ao mesmo tempo, não quero ficar preso a isso. Meu humor político sempre vai ter um viés, mas não quero ser o cara que só fala para um público de esquerda. Quero me comunicar com quem pensa diferente de mim também.

CC: Deu para rir da política em 2022?

MA: Não achei que o momento fosse bom para fazer piada. Era um momento grave, drástico e perigoso. Em 2018, fiz o Tutorial dos Presidentes (com imitações dos candidatos) e, em 2021, o Sinta-se em Casa (com piadas com vários bolsonaristas). No ano passado, eu tinha uma filha de 1 ano em casa, e sabia que ia ser superatacado por extremistas. Mas, mais do que isso, tem aquela questão: vamos fazer humor com a Suzane von Richthofen? Não. Em 2022, eu não estava rindo. Estava preocupado.

CC: E das invasões no Distrito Federal, dá para rir? Você fez um post escrevendo que o bolsonarismo é defecar no Portinari, esfaquear DiCavalcanti, oferecer cloroquina pra ema…

MA: Há um revisionismo não só histórico, mas da noção de civilidade. Esse episódio tem fragmentos terríveis, horripilantes, como o quadro do DiCavalcanti esfaqueado. Ao mesmo tempo, tem fragmentos engraçados, porque é distópico. O cara com a bunda de fora… São coisas meio invasão zumbi. Uma pessoa rezando para um pneu tem um valor cômico. É como o patriota do caminhão. Ou o chamado para os ETs. Essas coisas têm, obviamente, um valor cômico. Com certo distanciamento histórico, a gente talvez consiga brincar com isso. Mas ainda é difícil processar o que aconteceu. Triste é pensar que os responsáveis não vão ser culpabilizados. Foram para a cadeia os trouxas e alucinados.

CC: Quais são, neste dia, seus sentimentos em relação à política brasileira?

MA: Estou confuso. A gente fala muito de política, mas sem se aprofundar na política. A qualidade do debate é triste. A galera fala da faixa fake. Uma faixa é uma coisa simbólica. E essa abordagem esquerda e direita, comunismo e capitalismo…. É uma coisa meio Guerra Fria, meio ­Gorbachev (risos). O terraplanismo não faz mal a ninguém? Faz, sim. Porque, a partir do momento em que você acredita nele, você acredita em qualquer coisa. Se você se pergunta se a terra é redonda, você pode perguntar: “E se o chupa-cabra for de verdade?” Você começa a basear sua vida em conspirações. E as conspirações são muito mais interessantes que a realidade. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1242 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Entre a fé e a distopia “

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