Cultura

Emicida: “O Brasil que a gente aprendeu a amar é o do Aldir Blanc, não o da Regina Duarte”

Aos 34 anos, Emicida questiona o lugar da masculinidade negra no universo do rap e fala sobre a pandemia e o vírus instalados no governo

O artista, que começou a carreira nas batalhas de rimas como “o assassino de MCs”, hoje se aproxima mais da sensibilidade e da doçura. Foto: JÚLIA RODRIGUES
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“A gente não parou as nossas fábricas e escolas, não queimou pneu na rua pelo corpo de cada uma dessas pessoas.” O diagnóstico é do rapper paulistano Emicida, e refere-se simultaneamente às mortes pelo coronavírus, aos corpos da ditadura, a assassinatos como o de João Pedro Matos Pinto, morto aos 14 anos numa operação policial em São Gonçalo, no Rio, no último dia 18.

Emicida tem documentado a falência de nossa sociedade com as cores da sutileza e da doçura, como fez ao lançar em outubro passado o terno álbum AmarElo, que agora se desdobra no projeto AmarElo Prisma. É formado por quatro podcasts inspirados por quatro pilares identificados pelo monge budista vietnamita Thich Nhat Hanh: paz, clareza, compaixão e coragem. No primeiro episódio, no ar nas plataformas digitais, Emicida procura orientar seus pares das “quebradas” sobre segurança alimentar e saúde mental, entrevistando integrantes do Movimento Sem Terra, nutricionistas e outros especialistas em busca de paz, artigo raro em tempos de pandemia e pandemônio.

O artista compara a aventura a uma volta ao eu e às próprias origens, abordada também no começo do ano, quando publicou o livro Pra Quem Já Mordeu um Cachorro por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe…, no qual um grupo heterogêneo destrincha, faixa a faixa, seu trabalho musical inaugural, uma mixtape homônima lançada em 2009. Em cada um desses trabalhos, ele documenta a trajetória do “homem preto machão do rap” rumo à sensibilidade e à expressão dos próprios sentimentos. Em plena pandemia.

CartaCapital: Estamos vivendo dias difíceis, com pelo menos três jovens negros inocentes assassinados, além das mortes pelo coronavírus. Como ficar em pé diante disso tudo?

Emicida: Esse tipo de assunto, por mais duro e dolorido que seja, precisa estar na ponta da nossa lança, porque cada uma dessas pessoas de pele escura numa condição de pobreza hoje está ameaçada de morrer pela mão do Estado sem amparo nenhum, e a gente nem está falando de coronavírus ainda. Eu e meus colegas artistas, que provavelmente passeávamos pelos fones de ouvido do João Pedro, estamos aqui dizendo “fique em casa”, “salve vidas”. João Pedro estava em casa. Existe outra doença aí, outra causa mortis que atravessa a situação do corona. Quando a gente olha pelo espectro da política e toda a tragédia representada por esta ocupação que tem no Palácio do Planalto agora, esta é a única ocupação do País que devia ser destituída com a violência que é destinada a outras ocupações, como a Mauá, a Prestes Maia ou a do interior de São Paulo pelo governo do estado, que aconteceu agora, durante a pandemia. Bolsonaro, na sua cruzada de morte e ignorância, é só a ponta do iceberg. Tudo que estamos pagando hoje é o resultado direto das lições de casa que a gente não fez. A gente permitiu, todos nós, enquanto sociedade, em todos os governos anteriores, a liberdade de todas as pessoas que cometeram assassinatos na ditadura. A gente não parou as nossas fábricas e escolas, não queimou pneu na rua pelo corpo de cada uma dessas pessoas.

CC: AmarElo Prisma busca responder a tudo isso?

E: O Prisma parte da valorização não só do eu, mas do nós, partindo do eu. Aí vou trabalhar saúde mental, questões que foram roubadas de nós. Hoje penso quantas coisas me foram roubadas porque eu precisava fazer justiça ao estereótipo do que é ser um homem preto machão do rap. Ainda bem que posso reivindicar minha sensibilidade através de um projeto como AmarElo, e são a doçura e a sensibilidade que vão conduzir a gente para dentro desse Brasil que a gente aprendeu a amar, o Brasil do Aldir Blanc, não o Brasil da Regina Duarte.

CC: O podcast começa falando sobre paz, o mais difícil de encontrar agora.

E: Sempre fico com um questionamento, quando leio esses livros de uns monges budistas. Fico pensando como aquele livro seria se ele morasse no Complexo do Alemão. Mas aí também tenho de pensar que Thich Nhat Hanh atravessou a Guerra do Vietnã, um contexto bastante extremo de violência. Esse pensamento fala para nós hoje a importância da serenidade. Quando roubo a sua serenidade, roubo também a sua capacidade de se concentrar no que você ama. Se para quem vive em condições confortáveis isso é um desafio desgraçado, imagina para quem está na beirada deitado no chão porque tem um monte de buraco de bala na parede. A gente arranha de uma forma muito superficial o que significa ser um homem preto. Eu tento, através do AmarElo, tomar de volta todas as coisas que roubaram de nós. Por que não podemos ser sensíveis? Por que temos de ser máquinas de sexo e de trabalho? Quando você se protege embaixo de uma estrutura racista, corrobora com o assassinato de uma criança como João Pedro. Mas em momento algum a calma e a serenidade são distrações para que a gente não pense no perigo deste momento. A urgência é tamanha que a gente precisa estar inteiro.

“O Brasil que a gente aprendeu a amar é o do Aldir Blanc, não o da Regina Duarte”

CC: Você está falando da pandemia?

E: O que é pior, chegar no fundo do poço ou continuar caindo? Essas são as opções que têm sido dadas a nós. As duas são desesperadoras. O Brasil é o único país do mundo onde o coronavírus está se transformando num detalhe por causa do tamanho da Irresponsabilidade de quem está na condução da gerência. O governo vê no coronavírus um grande aliado.

CC: É interessante pensar que é um cara com o codinome Emicida que está fazendo uma trajetória rumo à sensibilidade, não?

E: Total. Lembra quando os Racionais MC’s foram no programa Ensaio? Mano Brown, numa das falas, disse que, se ele fosse batizar os Racionais hoje, os Racionais se chamariam Emocionais. Mano, isso me marcou profundamente. A discografia dos Racionais MC’s é composta em cima de músicas românticas que embalaram as transadas dos nossos pais, que nos trouxeram para o mundo. Minha mãe casou com o DJ (risos), obrigado, Marvin Gaye! E aí a gente volta para o meu nome: Emicida, o assassino de MCs. Agora eu sou o assassino e estou falando de sensibilidade? Olha que loucura.

“Mano Brown disse que, se fosse batizar, os Racionais hoje se chamariam Emocionais”, lembra Emicida. Foto: KLAUS MITTELDORF

CC: No podcast você conta que chegou a ter mania de perseguição e crise de ansiedade.

E: Eu estava vivendo coisas bacanas do ponto de vista profissional, mas com uma tristeza gigante. Fiquei com uma mania de perseguição desgraçada, fechei todas as janelas da minha casa, ficava no escuro o dia inteiro olhando, porque achava que alguém estava vindo me matar. No momento em que tive todos esses problemas psicológicos, procurei um terreiro. Eu não tinha conhecimento a respeito de nada de saúde mental, e estava ainda muito preso naquela ideia de, pô, sou um negrão, não pode se abrir, negrão tem de ser mau. Essa era a minha prisão, então não procurei uma psicóloga. Deveria.

CC: Nesta era das lives, as marcas patrocinadoras ficaram muito mais visíveis. Como isso está se desenvolvendo?

E: A gente está tentando encontrar formas de subsistir. Imagina que os nossos times são grandes, e estão todos parados. Tenho visto aqui, quantos amigos meus mandando mensagem vendendo os equipamentos que amam porque precisam pôr comida na mesa. Para as marcas é uma forma de visibilidade instantânea, participar de um momento de interação. Uma filósofa chamada Aza Njeri me falou: neste momento em que a gente está, o capitalismo suspendeu a única coisa que ele não alcançava, as nossas relações sociais. Nossa comunicação também começa a se restringir, e a live vira uma pracinha, um ponto de encontro, o Emicida está lá em tal aplicativo, vamos lá ver ele.

CC: Você tem gostado de fazer live?

E: Mais ou menos. Me divirto, mas não tem comparação com fazer um show de verdade.

“Tenho visto amigos vendendo equipamentos porque precisam pôr comida na mesa”

CC: Por que seu primeiro livro adulto é um livro coletivo?

E: A mixtape foi um epicentro de muitas coisas, e essas pessoas são todas pessoas que tinham alguma conexão com ela. Por exemplo, o Lula. O Lula era o presidente do Brasil, isso é uma coisa muito grandiosa, poder ter o presidente do Brasil escrevendo sobre o marco que foi uma mixtape de rap. E você tem o presidente daquele momento traçando um paralelo, e em um momento muito difícil também, porque escreveu aquilo de Curitiba.

CC: Num vídeo recente, o youtuber Felipe Neto chamou às falas os artistas, os influenciadores, sobre se posicionar politicamente. Como o vídeo pegou para você? E: Eu sou outro Brasil, mano. Obviamente, olho com bons olhos o fato de o Felipe Neto ter uma postura diferente agora, mas daí a elencar esse tipo de personagem como uma bússola para qualquer atitude deste campo em que a gente vive? A gente não chegou até aqui à toa. A gente chegou aqui por descuido. E ele foi bastante descuidado, durante muito tempo, para usar a melhor das palavras. 

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