Cultura
Em uma cela, o real e o sonho
De todos os livros do argentino Manuel Puig, O Beijo da Mulher-Aranha, é o que mais reverbera em nosso tempo
 
         
        O ano de 1973 foi decisivo para o escritor Manuel Puig (1932–1990): ele publica na Argentina seu romance The Buenos Aires Affair e, por conta disso, recebe ameaças de grupos de extrema-direita; em setembro, decide exilar-se no México; ao longo dos meses, entrevista presos políticos, reunindo material para seu romance futuro, O Beijo da Mulher-Aranha, lançado originalmente em 1976.
O romance, relançado agora no Brasil em nova tradução, se passa numa cela de presídio e é quase inteiramente composto de diálogos. Lado a lado estão Valentín Arregui, prisioneiro político, e Luis Molina, homem gay condenado por corrupção de menores. O primeiro procura usar todo o tempo disponível para estudar, lendo livros de sociologia e política, e para refletir sobre sua atuação no movimento do qual faz parte. O segundo gosta de falar sobre filmes, e conta, com profusão de detalhes, as tramas de produções de Hollywood.
“Começa com uma moça de Nova York que embarca num navio pra uma ilha do Caribe, onde o noivo a espera pra se casarem”, é o que diz Molina, no início de mais uma sessão. O leitor acompanha, sobretudo, a transformação de Valentín. Tudo nele – ideologia, postura, valores – convoca uma repulsa pelo colega de sala. Pouco a pouco, contudo, eles se aproximam, aprendem a conviver e a conversar.
 O Beijo da Mulher-Aranha. Manuel Puig. Tradução: Sérgio Molina. Todavia (288 págs., 94,90 reais)
 O Beijo da Mulher-Aranha. Manuel Puig. Tradução: Sérgio Molina. Todavia (288 págs., 94,90 reais)
Embora o começo seja atribulado (“Se você ficar debochando, não continuo, tô contando a sério porque gosto desse filme”), o percurso é claro: trata-se de uma celebração da linguagem, um elogio da fantasia em prol da construção de um relacionamento, tanto físico quanto espiritual, entre dois homens de mundos diferentes.
No final, é Valentín quem toma a iniciativa dos conselhos. Ele, que começou tão arredio e relutante, diz: “Então me escuta um pouco, que posso te ajudar. Tudo é questão de conversar. Antes de mais nada, você tem que pensar em se agrupar, não ficar sozinho, isso sem dúvida vai te ajudar”.
O alcance estético do romance de Puig está no modo como consegue articular o geral e o particular, ou seja, o modo como consegue falar da ditadura, do amor, das diferenças ideológicas e do fascínio pelo cinema, tudo no interior de uma cela. Esse espaço compartilhado por Valentín e Molina é, ao mesmo tempo, um dos tantos dispositivos da repressão, mas, também, uma cápsula do tempo, um laboratório de experimentação do idioma e dos afetos.
Puig continuará essa linha de experimentação em seus romances futuros. Sangue de Amor Correspondido, por exemplo, lançado em 1982, é baseado nas conversas que Puig teve com um pedreiro brasileiro, na época em que morou no Rio de Janeiro. Cai a Noite Tropical, de 1988, seu último romance, é construído a partir das conversas de duas irmãs idosas, Luci e Nidia, que falam das vidas alheias em um misto de provocação e carinho que guarda certa semelhança com a dinâmica entre Valentín e Molina.
O Beijo da Mulher-Aranha está situado no exato centro da produção de Puig, tendo preparado o terreno para as obras acima citadas. O uso criativo do mundo cinematográfico remete, no entanto, a temas e técnicas presentes em seu primeiro livro de estreia, A Traição de Rita Hayworth, de 1968.
Não há dúvida, contudo, que se trata do livro de Puig que melhor reverbera em nosso tempo: sua “mulher-aranha” captura elementos da política, da sociedade e do sonho, uma mescla complexa que é regida – do início ao fim do romance – pela maestria do estilo e da noção de composição de Manuel Puig. •
UM ROMANCE REPLETO DE IMAGENS
Na década de 1980, Babenco vislumbrou, na escrita de Puig, o cinema. Quatro décadas depois, um novo filme é lançado
por Ana Paula Sousa
 Rodado em São Paulo, O Beijo da Mulher-Aranha (1985) reuniu atores norte-americanos e brasileiros – Imagem: Island Alive Films
 Rodado em São Paulo, O Beijo da Mulher-Aranha (1985) reuniu atores norte-americanos e brasileiros – Imagem: Island Alive Films
A força imagética do romance de Manuel Puig capturou seu conterrâneo Hector Babenco. O cineasta, nascido na Argentina e radicado no Brasil, logo enxergou, naqueles diálogos, um filme em potencial.
A transformação da literatura em cinema não significa, porém, fidelidade. E aquilo que no livro ficava na cabeça do personagem Luis Molina, tornou-se, na tela, concreto: os filmes por ele narrados se tornaram filmes de verdade, com uma estética kitsch.
O Beijo da Mulher-Aranha (1985), coprodução internacional rodada em São Paulo, falada em inglês e estrelada por atores estadunidenses e brasileiros, é um marco do cinema independente latino.
Nela, Valentín Arregui, o revolucionário, é vivido por Raul Julia e Luis Molina, movido pela fantasia, por William Hurt. Babenco filma os dois homens, com seus modos de ser, numa cela sombria. Em oposição ao encarceramento, há, numa narrativa paralela, a liberdade provida pela imaginação de Molina, de onde sai a mulher-aranha interpretada por Sônia Braga.
O filme rendeu o Oscar de Melhor Ator para William Hurt e a indicação ao Oscar de Melhor Diretor para Babenco. A conquista foi, à altura, algo gigante.
No início dos anos 1990, o romance de Puig seria adaptado para a Broadway. Nessa versão, as partes oníricas do livro são transformadas em números musicais, nos quais a mulher-aranha se torna a verdadeira protagonista.
Vencedor de sete prêmios Tony, o espetáculo é a base do novo longa-metragem O Beijo da Mulher-Aranha, dirigido por Bill Condon, com estreia prevista, no Brasil, para janeiro de 2026. À frente do elenco, como a personagem-título, está Jennifer Lopez.
Publicado na edição n° 1386 de CartaCapital, em 05 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Em uma cela, o real e o sonho’
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