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Em ‘Um Dia Esta Noite Acaba’, Roberto Elisabetsky retorna às Diretas, mas mira o presente bolsonarista

O autor escancara, de modo cru, horrores pretéritos que podem se repetir num ­país lacerado pelo sadismo social

Em ‘Um Dia Esta Noite Acaba’, Roberto Elisabetsky retorna às Diretas, mas mira o presente bolsonarista
Em ‘Um Dia Esta Noite Acaba’, Roberto Elisabetsky retorna às Diretas, mas mira o presente bolsonarista
Uma noite. A ação do romance se passa no dia 25 de janeiro de 1984, data do comício que levou 300 mil à Praça da Sé - Imagem: Matuiti Mayezo/Folhapress
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Um Dia Esta Noite Acaba, do paulistano Roberto Elisabetsky, poderia ser uma peça de teatro ou um filme. O roteiro está pronto neste romance cuja ação se passa numa única noite, a de 25 de janeiro de 1984, num apartamento de Higienópolis, elegante bairro central de São Paulo.

Além do aniversário de 430 anos da fundação da capital, o momento guardava uma singularidade. A pouco mais de 3 quilômetros dali, tinha lugar o maior comício da campanha das Diretas Já até então. Estima-se que 300 mil manifestantes tenham ido à Praça da Sé.

O que parece ser uma trama envolvendo três personagens mais ou menos previsíveis – uma ex-militante de esquerda, seu filho, jovem publicitário carreirista, e um inescrupuloso presidente de multinacional – se mostra um caleidoscópio cujas partes se transmutam à medida que a leitura avança.

Em capítulos curtos, acompanhamos flashes da agitação estudantil pré-64, dilemas da adesão à luta armada, vidas dilaceradas pela prisão, tortura e exílio, o conluio de grandes empresas com os porões do regime e a expectativa de que, das ­ruas, surgisse um Brasil diferente.

Sobre essa meia dúzia de camadas temporais assenta-se uma sétima, oculta à primeira vista. Apesar de ter o passado como matéria-prima, Elisabetsky – ex-engenheiro que enveredou pela dramaturgia e pelo roteiro – visa o presente tomado pela fúria da extrema-direita bolsonarista.

UM DIA ESTA NOITE ACABA. Roberto Elisabetsky. Boitempo Editorial (248 págs., 49 reais).

Se a campanha das Diretas Já incide transversalmente na ficção como aposta futura no ocaso da ditadura, o livro vem à luz durante nova encruzilhada histórica: as eleições presidenciais de 2022. O autor escancara, de modo cru, horrores pretéritos que podem se repetir num ­país lacerado pelo sadismo social dos de cima e por seus recorrentes pactos arbitrados por solas de coturnos.

Elisabetsky disseca as últimas seis décadas numa narrativa da qual emergem múltiplas vozes, em saltos cronológicos. Escapando do didatismo, o autor insere reconstituições factuais que situam o leitor não familiarizado com a história. O torvelinho de memórias caminha para um desfecho exasperante, porém lógico.

Nesse enredo, cabem encontros e diá­logos de personagens ficcionais com figuras reais – fruto de apurada pesquisa. Um exemplo é frei Tito de Alencar, o dominicano sequestrado pelo comando da Operação Bandeirantes e supliciado, com requintes de crueldade, pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury, em 1970. Triturado física e emocionalmente, Tito suicidou-se no exílio francês, em 1974, aos 28 anos. A objetividade da descrição do calvário grita no livro.

O texto, econômico nos adjetivos e veloz nos diálogos, expõe o impacto dos grandes acontecimentos públicos nas miudezas cotidianas de vidas comuns.

Sem didatismo ou doutrinarismo, ­Elisabetsky fisga o leitor numa espiral de verdades e mentiras. “Escrevi em algum lugar que a memória, quando colocada no papel, parece ser mais fácil de suportar”, lê-se, na carta deixada por um personagem ausente. “Hoje, tenho dúvidas se isso é verdade. A dor que hoje me oprime é maior que a dor da tortura ou da injustiça. É a dor do vazio. A dor que não foi.”

Pela própria qualidade do trabalho, valeria a pena o autor dar atenção a pequenos deslizes históricos numa próxima edição, como situar a criação do PCdoB após o golpe de 1964, ou colocar um personagem surpreso com “a total ausência de autocrítica dos exilados em relação ao fracasso da estratégia de luta armada no Brasil”. Há documentos que atestam o contrário: o MR-8 foi radical ao examinar os equívocos dessa opção ainda em 1972, em Santiago do Chile.

São, de toda forma, minudências que em nada ofuscam o brilho desse pequeno e contundente apelo a tempos melhores. •


*Professor de Relações Internacionais da UFABC e coordenador do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (Opeb).


VITRINE

Por Ana paula sousa

Em Ritos de Passagem(Alfaguara, 216 págs., 69,90 reais), William Golding, Nobel em 1994, parte das relações estabelecidas entre os tripulantes e os passageiros de um navio da Marinha inglesa para, mais uma vez, refletir sobre as sombras e as vulnerabilidades dos homens.

A Substituição ou As Regras do Tagame (Estação Liberdade, 352 págs., 74 reais) é o primeiro volume da trilogia autobiográfica de Kenzaburo Oe, outro Nobel. O ponto de partida da narrativa é uma tragédia íntima: o suicídio do cunhado de Oe, o cineasta japonês Jûzô Itami.

Com a guerra da Ucrânia em curso, a editora Civilização Brasileira relança, oportunamente, uma obra central de Hannah Arendt: Sobre a Violência (154 págs., 59,90 reais). O ensaio, escrito entre 1968 e 1969, ganhou, na nova edição, um prefácio de Celso Lafer.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1203 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A noite dos desesperados”

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