Cultura

Em “Pendular”, Julia Murat investiga as fronteiras dos relacionamentos

Como uma performance, as tensões da vida do casal são resultados do (des)equilíbrio nas pontas entre a confiança e a vulnerabilidade

Cena do filme Pendular
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Logo nas primeiras cenas de Pendular, filme de Julia Murat que estreou na quinta-feira 21, o casal interpretado por Raquel Karro e Rodrigo Bolzan traça com uma fita adesiva laranja a divisória de um galpão em São Paulo transformado em estúdio e residência.

Um amigo, ao visitar o espaço, brinca que o cenário é semelhante ao de Dogville, clássico de Lars von Trier.

De fato, as interdições e fronteiras daquele espaço não são mediadas pelo concreto, mas por uma projeção entre frágil e abstrata. De uma lado, ela, dançarina contemporânea, se dedica à coreografia; do outro, ele, escultor, tenta dar forma a uma nova intervenção que, confessa, não sabe exatamente o que é nem para onde vai. Naquele pêndulo, um lado pesa, e outro precisa flutuar.

O jogo de luzes e sombras da fotografia permite observar, naquele cenário de fronteiras indefinidas, fragmentos de corpos em interação com o espaço. Da cidade só ouvimos os ruídos. Do lado de dentro, nunca sabemos quando aqueles corpos estão encenando, ensaiando ou simplesmente flanando: embora atípica, aquela residência parece absorver as urgências do mundo corriqueiro do lado de fora, onde as divisas entre trabalho, descanso, entretenimento e conexões estão dissolvidas em linhas tão perenes como uma fita adesiva.

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Em uma das cenas, a personagem de Raquel Karro, tentada a coreografar e a levar ao palco (qual?) até o modo como dispõe as pernas sobre as cadeiras quando lê, é chamada de ansiosa e workaholic por um parceiro de dança. Demoramos a perceber esses traços naquela artista: ela destoa da imagem dos viciados em trabalho das grandes cidades que circulam pelas grandes avenidas atarefados, presos ao celular, falando alto e paramentados em ternos, vestidos, sapatos de salto alto.

Nesses lares onde estabelecemos fronteiras confusas entre ofício e abrigo estabelecemos também as relações afetivas. Naquela engrenagem mediada por uma fita adesiva um casal também circula entre luzes e sombras em busca de uma comunicação que é também ruído.

Se nos filmes Como nossos pais e As Duas Irenes, lançados também recentemente, vemos o esgarçamento das relações tradicionais (papai-mamãe-filhinhos e mitos sobre o que fazemos quando não estamos em casa e delegamos os cuidados dessa casa a apenas um dos lados da história), em Pendular as relações, como o exercício artístico – sensível a luz e sujeito a escuridão – se abrem para experimentações, mas não escapam das interdições.  

“Não está dando”, diz o personagem em uma das cenas ao reivindicar mais espaço para a “sua” criação.

A partir de então a relação mediada pelos esparadrapos passa a ser compreendida como uma disputa por território, e essa disputa só prescindirá de um conflito aberto e deflagrado se um dos lados ceder. Advinha qual.

Ao longo do filme, tentamos acompanhar as distâncias e silêncios de quem não parece disposta a se subordinar às fronteiras, estas mais bem definidas, do que se convencionou a chamar de “conquista”. Esta conquista, afinal, requer o estabelecimento de uma vontade, como uma queda-de-braço sobre desejos, entre elas a sujeição dos corpos às vontades e destinos.

O exercício parece simples quando se negocia a disposições dos móveis ou das obras em criação, mas se complica quando se embrenha em questões como maternidade, confinamento, corpos subjugados, etc. É quando dois corpos deixam de ocupar o mesmo espaço e produzem fissão.

A crise de criatividade que atinge aquele casal é a crise de um relacionamento fadado ao jogo de imposições. Em uma das cenas, a personagem tenta descobrir para onde levam os cabos que parecem unir aquele galpão com o mundo afora; o marido diz que aquilo não importa, e já não sabemos se ele se refere a cabos de TV, a uma intervenção ou qualquer outra alegoria. Importa?

A estética documental do filme, que também dilui fronteiras ao levar para a tela outras linguagens artísticas, como a dança contemporânea em processo de elaboração, tem como inspiração a performance Rest Energy, de Marina Abramovic e seu então marido, Ulay.

Nesta encenação, de 1980, o casal segura um arco tensionado somente pelo peso de seus corpos, apontando uma flecha para o coração de Abramovic, numa tensão provisória entre confiança e vulnerabilidade que chega a causar pânico só de ver. Pudera: nas relações contemporâneas, liberais ou tradicionais, o desequilíbrio das relações é o indício do vacilo de quem deveria segurar as pontas da confiança e, em vez disso, impõe sua vontade nas sombras da vulnerabilidade.

Pendular é a história da ocupação assimétrica do território dos afetos.

 

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