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Em ‘O Festival do Amor’, Woody Allen não se desprende de sua persona cinematográfica

Aos 86 anos, o diretor sabe que o cinema não muda nada. Só oferece abrigo quando o mundo fica inabitável

Em ‘O Festival do Amor’, Woody Allen não se desprende de sua persona cinematográfica
Em ‘O Festival do Amor’, Woody Allen não se desprende de sua persona cinematográfica
Ecos. Desta vez, Woody Allen coloca em cena um professor de cinema aposentado
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Woody Allen perdeu parte dos recursos de produção que sempre teve para filmar e a quase unanimidade do público. Ainda bem que não perdeu o bom humor.

Em O Festival do Amor, em cartaz desde a quinta-feira 6, o diretor, mais uma vez, se disfarça e não aparece em cena. A estratégia vem sendo adotada desde 2016, depois que Dylan, sua filha adotiva com a atriz Mia Farrow, reiterou as acusações de que na infância teria sido vítima de abusos sexuais.

É impossível, entretanto, ignorar as semelhanças entre Mort, o protagonista, e a persona que Allen interpretou em quase 50 trabalhos. Desta vez, o intelectual neurótico e inepto é vivido por Wallace Shawn, aquele tipo de ator de quem a gente nunca sabe o nome. A pequena astúcia cria um prazeroso jogo de ecos e distanciamentos.

Mort é um professor de cinema aposentado que tenta, há décadas, escrever o romance que, acredita, o transformará em um novo Kafka ou Dostoievski. Seu casamento com a bela Sue está por um triz e, para não a perder, ele decide acompanhá-la ao Festival de Cinema de San Sebastián.

A participação de produtores espanhóis no financiamento do filme exigiu que Allen valorizasse as atrações turísticas de San Sebastián, mas o verniz da fotografia do mestre italiano Vittorio ­Storaro converte as locações impostas em belos cenários cinematográficos.

As cenas de uma sessão de psicanálise na abertura e no fim da trama indicam que as reminiscências e a imaginação de Mort se confundem com as imagens a que assistimos. Apenas os sonhos têm um sinal distintivo no relato: o preto e branco dos filmes antigos demarcam as cenas.

As sequências de clássicos modernos que Allen insere aqui e ali não são apenas citações nostálgicas ou homenagens veneradas a Welles, Fellini, Truffaut, ­Godard, Buñuel e Bergman. Elas são paródias, distorções oníricas. A estratégia ajuda a ver que os filmes não existem apenas num tempo embalsamado.

Mais uma vez, o que interessa ao cineasta é habitar o mundo que o cinema cria e recria. Desde a visionária Cecilia de ­A Rosa Púrpura do Cairo (1985), o cinema é, em seus filmes, um lugar onde se vive algo fora do alcance ou aquilo que poderia ser. Por isso, Mort antipatiza com o jovem e pretensioso diretor francês que, além de seduzir sua mulher, adota a pose de que filma para mudar o mundo.

Aos 86 anos, Allen sabe que o cinema não muda nada. Só oferece abrigo quando o mundo fica inabitável. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1190 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JANEIRO DE 2022.

CRÉDITOS DA PÁGINA: IMAGEM FILMES

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