Cultura

Em ‘Esse ­Cabelo’, Djaimilia Pereira narra o processo de aceitação do crespo

Livro apresenta uma alegoria afetiva que pode dar ao leitor a impressão de estar entrando em contato com a história da própria autora

“Percebi que não estava sozinha em minha inquietação, que havia muitas moças que sentiam coisas muito parecidas”, diz a escritora
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“A verdade é que a história do meu cabelo crespo intersecta a história de pelo menos dois países e, panoramicamente, a história indireta da relação entre vários continentes: uma geopolítica.” Essas palavras são de Mila, protagonista de Esse ­Cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida, negra nascida em Luanda, capital de Angola, em uma família inter-racial, e criada em Portugal.

No livro, o cabelo crespo, traço fenotípico marcante, vira sujeito, quase como se ganhasse vida própria. Ao longo das páginas, a protagonista apresenta as memórias da infância, que incluem os muitos tratamentos capilares a que foi submetida, além de recordações de familiares – entre eles, as avós, uma negra, outra branca –, momentos de afeto, descobertas e dúvidas. Cada lembrança tem o cabelo em primeiro plano e guarda em si o universo interior da personagem narradora, que surge sempre como forasteira em seu próprio país, seja este o país qual for, Portugal ou Angola.

Em tom autobiográfico, Esse Cabelo apresenta uma alegoria afetiva que, em um primeiro momento, pode dar ao leitor a impressão de estar entrando em contato com a história da própria autora. Até o nome é parecido. Mas Mila não é Djaimilia. Em conversa com CartaCapital, via Zoom, a autora, que se mudou recentemente para Zurique, onde fará uma residência artística, conta que o livro nasceu do desejo de ver retratada, em uma obra literária, a complexidade de uma mulher negra.

“Muitas vezes, como leitora, me senti defraudada por não encontrar na literatura do meu país o testemunho de personagens de origem africana que surgissem em toda complexidade de sua intimidade, de uma forma não caricatural, não estereotipada”, diz. Mila é essa mulher complexa. Como também são complexas a sua relação com o cabelo e a relação das outras pessoas com ele. A narrativa passa pela negação do cabelo – com relatos dos episódios para deixá-lo mais arrumado e domado – e chega até o encontro de Mila com sua ancestralidade. Africana em diáspora, a narradora traz em si o não pertencimento.

ESSE CABELO. Djaimilia Pereira de Almeida. Editora Todavia (104 págs., 57,90 reais.)

Lançado em 2015, em Portugal, o livro chegou ao Brasil no início deste ano. Antes, circulara em versões digitais, que possibilitaram que mulheres negras, como eu, pudessem encontrar nele conexão com suas próprias histórias e com outras tão similares. Os quase dez anos que separam a edição portuguesa da brasileira não foram, porém, suficientes para datar a história. A jornada de Mila é a mesma de tantas mulheres negras que, para se conectarem com o próprio cabelo, atravessam um processo longo e conturbado, que passa pela autoaceitação e pelo reencontro com sua identidade.

A partir do livro, a autora pôde entrar em contato com uma rede de mulheres portuguesas com vivências muito parecidas. Na entrevista, ela recorda que um dos momentos mais importantes no percurso de Esse Cabelo aconteceu logo após o lançamento em Portugal, quando enviou exemplares para algumas produtoras de conteúdo portuguesas, todas negras, que faziam vídeos sobre cabelo.

“De repente, essas moças começaram a levar o livro para dentro de seus vídeos e a falar sobre ele. Isso me deixou emocionada. Desde o início, minha intenção era tentar partilhar. Então, vi que havia um processo de identificação extraordinário. Percebi que não estava sozinha em minha inquietação, que havia muitas moças como eu, que sentiam coisas muito parecidas”, revela.

Mila não é Djaimilia. Mas também é. E a complexidade de seu mundo é um convite às mulheres negras, para uma conversa familiar, quase um papo entre amigas, em que se ouve uma história nova, mas de alguma maneira conhecida. E também para se ver nesse espelho e encarar o rosto e o cabelo de frente. Para os demais, o texto é a oportunidade de conhecer um pouco mais dessa mencionada geopolítica, e acompanhar Mila nessa busca pelo próprio lar. •


*Diretora de Diversidade, Equidade & Inclusão da VMLY&R.

FEMINISTA E ANTIRRACISTA

Alice Walker ganha novas edições no Brasil

A Cor Púrpura, em edição comemorativa de 40 anos, e Gente Legal…, um trabalho feito para as crianças

Em comemoração aos 40 anos da publicação de A Cor Púrpura (1982), a editora José Olympio lançou, no fim de 2021, uma bonita e alentada edição do livro que, em 1983, transformou Alice Walker na primeira mulher negra a ganhar o Prêmio Pulitzer.

A nova edição de A Cor Púrpura (288 págs., 89,90 reais) traz prefácios escritos pela autora em diferentes ­reedições da obra tornada ­filme pelas mãos de Steven ­Spielberg. Esse lançamento é agora complementado por outro: Gente Legal Está em Todo Lugar (José Olympio, 56 págs., 69,90 reais).

O livro, ilustrado por Quim Torres, revela para o público brasileiro uma faceta menos conhecida de Alice Walker: a de autora de livros infantis. Na obra, ela escreve um poema em tom alegre, que tem o propósito de mostrar que, não importa onde, os seres humanos são, no fundo, muito parecidos entre si.

Em entrevista concedida no ano passado, por ocasião do lançamento do livro nos Estados Unidos, ela disse que, para ser legal, uma pessoa deve reunir três características: gentileza, generosidade e paciência. Oitava filha de um casal de agricultores, nascida em 1944, em ­Eatonton, no estado da ­Geórgia, Alice Walker conheceu o oposto disso na infância.

Pioneira nas lutas feministas e antirracistas, Alice mostra, em Gente Legal Está em Todo Lugar, que se aproxima dos 80 anos tão ativista quanto sempre foi e ainda mais encantadora. – Por APS

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1202 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os fios da ancestralidade”

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