Cultura

Em casa, com Hilda Hilst

Artistas pagam para viver na residência da poeta e buscar inspiração para as suas obras

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Do portão de ferro com as iniciais HH divisa-se um caminho ladeado por palmeiras, no fim do qual surge, entre as paredes ocres da Casa do Sol, um séquito de 13 cães a latir e a esguia silhueta de Jurandy Valença. “Quem entra por esse portal sente: o tempo aqui é diferente”, diz Jura, enquanto fecha o portão e chama os bichos pelo nome. Um deles, o mais velho dos vira-latas a guardar a casa de Hilda Hilst, com -Alzheimer. “Nenê conheceu Hilda viva.” Ele também: morou com a escritora mais polêmica do Brasil nos anos 1990, como dezenas de artistas, amigos e fãs – sua “família eletiva”. Hoje diretor de projetos do instituto homônimo (IHH), habita outra vez um dos cômodos. “A casa me trouxe de volta”, diz Jura, enigmático, a caminho do jardim onde uma mesa de pedra jaz sob a imensa figueira. “Quem chega percebe algo na casa que faz a pessoa parir sua obra ou sair correndo. É o espírito da coisa.”

Foi num pedaço de terra coberto por capim no Parque Xangrilá, em Campinas, que, em 1965, Hilda Hilst fez uma mesa. Fincada em pedra no solo fértil da antiga fazenda da mãe, seria o marco de uma vida e testemunha de um naco importante da história da literatura nacional. “A Hilda tinha mania de mesa. Foi a primeira coisa que ergueu no terreno. O tampo não é original, porque, nos anos 1970, Jô Soares sentou em cima”, conta Jura. Enquanto a casa era erguida, Hilda fumava à sombra da “milagrosa” figueira. “Aqui, o Caio Fernando Abreu pediu para mudar a voz e conseguiu”, diz Jura. Com um Parliament na mão, ele desfia as histórias guardadas entre os muros da casa onde Hilda viveu de 1966, quando deixou para trás uma vida de socialite para viver a rotina de laboriosa asceta (só interrompida por festas regadas a vinho), até morrer em 2004. Ali, uma das maiores escritoras do País escreveu 80% de sua obra.

“A casa tem vida própria”, diz o cineasta Daniel Fuentes, sentado em um sofá na sala com um belo retrato da velha Hilda atrás de si. Aos 29 anos, o herdeiro dos direitos autorais da escritora é o presidente do IHH, criado por seu pai, o escritor José Mora Fuentes, amigo de Hilda e residente da casa por 20 anos, para evitar o destino certo. Hilda havia morrido, os livros sido republicados, o arquivo pessoal cedido à Unicamp. De escanteio, apenas a casa. Quando Fuentes morreu, em 2009, Daniel assumiu o imóvel e com ele a dívida de 3 milhões de reais de IPTU, acompanhada da proposta de uma empreiteira. “Pagariam 3 milhões de reais para construir 110 casas aqui. Os herdeiros queriam aceitar.” Sorte que o tombamento saiu em 2011. A venda de um terreno anexo pagou a dívida. E a casa pôde reencontrar sua vocação.

Com um crowdfunding, o IHH deu início a um teatro de ocupação. Em abril, a voz de Hilda surgirá entre as arcadas, com a peça Jozú, o Encantador de Ratos. Daniel aponta para o pátio. “Aqui será o teatro”: móvel, para cem pessoas em noites festivas. Mas a casa nunca será um local convencional de cultura. “Somos uma casa -voltada para dentro.” Daí o foco nas residências. Trinta pessoas já foram recebidas: pagam 3 mil reais e moram em um dos cômodos: escrevem sobre as mesmas mesas, fuçam os livros da biblioteca, muitos com rabiscos e notas dela. “A pessoa paga para ter acesso ao mundo de Hilda”, resume Daniel. Jura, que faz a seleção, aprovou um projeto na Funarte que trará cinco artistas. Obras inéditas serão produzidas. “E novas vivências. A casa é um organismo vivo, que escolhe seus residentes. É o espírito da coisa.”

Juarez Dias aquiesce. Após visitar o local para discutir os direitos de uma peça, inscreveu-se em uma bolsa literária com um projeto sobre a casa. Ganhou. “Caí na armadilha da casa”, conta, rindo em sua estoica cela, onde analisa cartas, fotos, livros, bilhetes – um cotidiano de fragmentos que não está nas livrarias. “Vim ouvir os cômodos porque a casa é a obra. É preciso viver aqui para entender o espírito da coisa.” Dias atrás, dormiu com uma foto de Hilda sob a figueira. Acordou com o primeiro parágrafo na cabeça. Uma frase resume o tal espírito. “Mas como muitas vezes era do seu feitio não deixar vestígios, ao acordar ela não se lembrou dele. Disse-lhe: ‘Se tens um PROJETO, então constrói a CASA e faz dela tua OBRA’.”

Casa e obra se misturam para uma escritora que decidiu deixar a sociedade e se encerrar em sua “torre de capim”, povoada com amigos para inspirá-la e cães para protegê-la – nela passando quase 40 anos. “Era quase impossível tirar Hilda de casa”, lembra Jura, secretário -pessoal dela de 1991 a 1994. “Ela saía do quarto, vinha tomar o café, ia até o escritório e só voltava à noite para comer e beber. Depois voltava ao quarto. Era um eterno percurso em U.” Daí a casa estar nos escritos. Nas crônicas, lidas aos residentes entre gargalhadas toda manhã, estão as pessoas que batiam à porta da casa em peregrinações curiosas. “E outro cara que eu conheci, todo tímido, parecia sempre um urso triste, também gostava de poesia”, escreve Hilda. “Uma tarde veio se despedir, ia morar em Minas… Perguntei: ‘E todos aqueles gatos de que você gostava tanto?’ Resposta: ‘Tive de matá-los’. ‘Mas por quê?!’ Resposta: ‘Porque gatos gostam da casa e a dona que comprou minha casa não queria os gatos’.”

Erguida para abrigar a vastidão de sua genialidade – e seu ego –, a casa exsuda insinuações biográficas e inspirações artísticas a cobrir, como poeira, mesas, estantes e paredes. São esculturas, quadros pintados por amigos (entre eles a residente Olga Bilenky), uma bíblia em francês, um Buda verde com colar de pérolas. E fotos, muitas fotos de Hilda em festas cercada de gente, ameaças ao mito da misantropa velha louca. Acima de tudo, o silêncio. “A gente brinca que nos primeiros dias a casa cala. E depois vem um afã produtivo. A casa inspira”, filosofa Jura. Não à toa, há na parede da sala um relógio onde se lê: “É mais tarde do que supões”.

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