Cultura
Em ‘A Mulher de Um Espião’, o medo é construído de forma sorrateira
Kiyoshi Kurosawa arma uma narrativa apropriada para atrair quem não gosta de terror
Kurosawa, o Akira, é até hoje sinônimo de cinema japonês. Outro Kurosawa, o Kiyoshi, é menos conhecido, apesar de filmar histórias mais conectadas com o que, por puro vício, ainda chamamos de realidade.
A Mulher de Um Espião, vencedor do prêmio de Melhor Direção no Festival de Veneza de 2020, chega aos cinemas brasileiros na quinta-feira 31 e é uma entrada mais convencional ao universo elaborado de Kurosawa.
Ambientado no período pré-Segunda Guerra Mundial, o drama histórico é protagonizado por um casal burguês de Kobe que desafia o poder crescente das forças fascistas.
Ela ironiza a imposição de roupas tradicionais às mulheres. Também não demonstra se preocupar com o que vão dizer ao convidar um colega da juventude para visitá-la, enquanto o marido está viajando.
Ele, por sua vez, é um empresário liberal que desafia o nacionalismo e o militarismo, mantendo relações com clientes ocidentais e protegendo um jovem pacifista.
Durante uma viagem de negócios à Manchúria, sob ocupação japonesa, o marido fica sabendo que o exército utilizou armas biológicas contra civis. A descoberta leva-o a tomar um rumo que o converte em traidor. Isso tudo enquanto a esposa suspeita que ele a trai.
A descrição assim, limitada à trama, elimina o aspecto mais fascinante do cinema de Kurosawa: a reflexão que o cineasta faz sobre as imagens, ou melhor, sobre como enxergamos o que os olhos veem.
Os filmes de Kurosawa são povoados por duplos, assombrações e espectros, elementos que fizeram dele um nome mais conhecido por fãs do cinema de terror.
A ficção fantástica deu ao cineasta liberdade para especular sobre a supressão da materialidade, a dependência crescente da tecnologia e sobre como isso nos tornou incapazes de distinguir fatos de ficções.
Embora não utilize os elementos sobrenaturais que consolidaram seu renome, Kurosawa constrói em A Mulher de Um Espião uma narrativa mais sorrateira, apropriada para atrair quem tem pavor de filmes de terror.
Ele contorna as obviedades do cinema histórico, evitando, por exemplo, retratar o fascismo por meio de cenas que visam provocar aversão moral ou choque. Há uma tortura, mas o filme não a exibe.
No lugar do terror, A Mulher de Um Espião espalha o medo na forma banal de suspeitas, duplicidades e traições. A imagem, aqui objetificada em um rolo de filme, pode revelar segredos tanto quanto esconder e trapacear.
No mundo dominado pela pós-verdade, não surpreende que as ficções escorregadias de Kurosawa tenham se tornado realistas. E isso não é pouco assustador.•
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1201 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O medo construído de forma sorrateira”
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