Cultura

Eliana Pittman, a indefinível, volta à pista após 17 anos sem gravar

Filha adotiva do saxofonista norte-americano Booker Pittman, está de volta com ‘Hoje, Ontem e Sempre’, um álbum minimalista

No repertório, ela conciliou jazz, bossa-nova, samba e carimbó
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Eliana Leite da Silva era uma cantora inclassificável no país do samba. Revelada pelo padrasto, o saxofonista estadunidense Booker Pittman, transformou-se em Eliana Pittman e passou a cantar standards de jazz em 1961, aos 16 anos. Rodou o mundo com o pai adotivo e, de volta ao Brasil, tornou-se “rainha do carimbó” paraense, mesmo sendo nascida no Rio de Janeiro, filha de mãe paulista com pai gaúcho, ambos mestiços. Em 1978, parou de gravar e lançou apenas dois CDs, em 1992 e em 2002. Após 17 anos de hiato, está de volta com Hoje, Ontem e Sempre, um álbum minimalista, que ela chama de “anti-Eliana Pittman”, por ser fundado em voz, violões e percussão, e só. Vão longe os tempos dos arranjos de big band e do sax de Booker Pittman.

“Já teve, não é uma coisa que ficou para o resto da vida. Já foi”, ela descreve o sucesso internacional de tempos em que excursionava por Europa, Estados Unidos e América Latina e era focalizada (em 1965) como newest brazilian bombshell pela revista americana de orgulho afrodescendente Ebony. O acaso orientou o início da jornada: Ofélia, mãe de Eliana, conheceu Booker na apresentação de Louis Armstrong no Teatro Paramount, em São Paulo. “Minha mãe era cabeleireira, costureira, uma líder negra aqui de São Paulo. Quando viu Booker entrando, ela lembrou que tinha visto uma reportagem na revista O Cruzeiro sobre ele sendo resgatado do vício no Paraná, vindo da Argentina, uma história muito incrível que a marcou. Quando terminou, ela foi conversar com ele, e não sei como foi que minha mãe namorou Booker Pittman atrás da igreja da Consolação durante seis meses.”

No disco Eliana & Booker Pittman, de 1962, a artista infantojuvenil aparece indomada, algo esganiçada, alternando-se entre peças de jazz e música brasileira, do tipo da hoje politicamente incorreta Mulata Assanhada, de Ataulfo Alves. Treinada pelo padrasto, chegou a estudar canto lírico, mas ele interrompeu o processo ao ouvi-la cantar Garota de Ipanema de modo totalmente empostado. O segundo LP da dupla, News from Brazil – Bossa Nova! (1963), veio inspirado no movimento insurgente brasileiro, seja pelo repertório bossa-novista, seja pelas interpretações bem mais intimistas.

A roda girou outra vez quando Booker se descobriu com câncer na laringe e parou de se apresentar com a filha. “Enquanto meu pai estava doente, como sustentei a casa? Viajando, trabalhando, funcionando o tempo todo”, lembra. A vocação para o ecletismo acompanhou a reviravolta. É Preciso Cantar (1966) começa por um samba-enredo, O Mundo Encantado de Monteiro Lobato. Eliana guarda o orgulho do pioneirismo dessa gravação. “O pessoal da gravadora disse: ‘Não pode, isso é música da Mangueira, da favela, de morro’. Não queriam deixar. Inclusive, o pessoal de escola de samba não me dá mérito de ter feito isso. Não fiz para ter mérito, mas um dia ainda vão, porque a primeira gravação de samba-enredo que existe no Brasil quem foi que fez? Eliana Pittman.”

Sobre o sucesso interacional: “Não ficou para o resto da vida”

Resiste ao esquecimento, no encarte de fotos do CD Hoje, Ontem e Sempre, uma imagem na qual Eliana encabeça um elenco formado pelos atores Walmor Chagas e Raul Cortez, o bailarino Lennie Dale e os jovens músicos Caetano Veloso e Gilberto Gil, no espetáculo Momento 68. “Fomos do Oiapoque ao Chuí, para Portugal. Nesse casting, o maior cachê desse povo todo era o meu. Tanto que, quando (o empresário dos tropicalistas) Guilherme Araújo soube, deu um rolo danado, porque ele achou que isto aqui (aponta para Caetano e Gil na foto) era mais importante.”

Enquanto a Tropicália modernizava o Brasil, Eliana perdia Booker (ele morreu em 1969) e tinha de reorientar sua carreira, num rumo que ela já frequentava de modo disperso, intuitivo: o da brasilidade. Dentro dessa procura, descobriu no Recife o pernambucano Geraldo Azevedo, que revelou para o Brasil ao trazê-lo para tocar em seu show. Cantou frevo e a toada moderna Viola Enluarada, misturadas com canções em iídiche. Gravou Sabiá de Chico Buarque e Tom Jobim e Caminhando de Geraldo Vandré. Cantou Estrela É Lua Nova, do maestro Heitor Villa-Lobos, e revelou o sambista João Nogueira, na nacionalista Das 200 para Lá (Esse mar é meu/ leva seu barco pra lá desse mar). “Vendi muito disco com essa música, mas me sacanearam. Colocaram num disco pequenininho, não foi no LP. Sofri bastante na mão de gravadoras”, lembra.

Em Momento 68, contracenou com Lennie Dale (ao fundo), Caetano, Gil, Walmor e Raul Cortez

Por volta de 1974, apresentando-se no Maranhão, Eliana ouviu pela primeira vez um tipo de música que lhe chamou a atenção: era o carimbó do Pará, na voz do modernizador Pinduca. A face indígena talvez tenha gritado, e a carioca explodiu com o gênero tradicional amazônico. “Vendi demais o carimbó. Eu precisava encontrar a minha brasilidade”, define. “O pessoal falava que eu era muito boa, mas não vendia disco, só cantava bem em americano. Não davam colher de chá para mim, não.” Parece referir-se a si ao falar do mestre do carimbó: “Pinduca sofreu muito preconceito por cantar a música autêntica do Pará. Olha que vergonha para este país”.

À parte o amor pela brasilidade, parece tumultuada a relação com o país natal. “O português é o pior colonizador que existe no mundo. A parte latino-americana vai para o meio da rua, você vê a garra que a América Latina tem. Não deixaram o brasileiro entender que, se a energia e a força que colocam em partida de futebol colocassem para defender nosso país, nós não estaríamos como estamos agora.”

“Minha versatilidade incomodava. Sou indefinida, fazer o quê?”

No mesmo momento que o carimbó, Eliana lançou a balada Abandono, de Ivor Lancellotti, que Roberto Carlos descobriria e gravaria cinco anos depois. “Ivor sabia que Roberto detestava regravação, não disse nada para ele. Quando Roberto soube… Ele não admite que fui eu que lancei Abandono. Roberto é muito bobo, né? É bobo, bobão”, ri. E recorda que o futuro “rei do iê-iê-iê” frequentava a casa de Booker na época em que pai e filha se apresentavam no mitológico Beco das Garrafas. 

O arco histórico perfaz uma cantora sem gênero musical próprio, tal como indefinida racialmente. “Isso me atrapalhou naquela fase que era assim: ou só canta samba, ou só canta samba-canção, ou bolero… As pessoas não admitiam versatilidade. Você ser versátil era crime. Da maneira que viam, parecia que eu não tinha personalidade”, avalia. “Minha versatilidade incomodava todo mundo, achavam que eu tinha que definir. Gente, eu sou indefinida, vou fazer o quê?”

Com o pai adotivo (acima), Booker Pittman, e nas capas de revista com Roberto Carlos. “Roberto é bobão”, ri

Isso, mais as desavenças com gravadoras e um “trauma de estúdio”, ajuda a explicar a interrupção das gravações de 1978 em diante. Minhas Novas Influências, de 2002, ela bancou sozinha e vendeu 10 mil exemplares em bancas de jornal. “Se não tem condições, o que você vai fazer?”, justifica. Além de minimalista por força das circunstâncias, Hoje, Ontem e Sempre chega com tiragem de apenas 500 cópias, em tempo de cancelamento da mídia física do CD. Estava “paradona em casa”, como diz, quando foi resgatada pelo produtor Thiago Marques Luiz. O disco contempla repertório de samba-enredo, Martinho da Vila, Candeia, Gilberto Gil, Tom Jobim, Cazuza e o argentino Fito Paez. De bônus, traz a gravação inédita de um show em Paris, em 1970, formado majoritariamente por standards da bossa-nova, mais Aquele Abraço, de Gil, e Ponteio, de Edu Lobo. 

É repertório de exceção para Eliana, que explicita uma preferência por autores menos conhecidos. “Nunca fui de ir para o medalhão. O medalhão está pego, vamos pegar os pequenininhos e dar uma força”, escolhe. “As pessoas acham que tenho que dar uma de diva. Eu não sou diva, pelo amor de Deus”, reitera, numa potente autodefinição para uma artista que, além de Pittman, sempre foi Silva.

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