Ele chegou

O frio está entre nós. Não aguentava mais tanto sol, tanto brilho, este mundo com febre

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E o frio, minha gente, finalmente chegou. Tímido ainda, inseguro, mas já me fez assaltar o guarda-roupa e vestir uma daquelas blusas de que eu nem me lembrava mais que eram minhas. Agora, em lugar dos braços suados e da pele ardendo, sinto o conforto macio destas mangas de malha flanelada. É uma carícia de que há muito andava esquecido.

E ele chegou de manhã cedo, quando levantei e dei de cara com o céu encoberto por nuvens cinza. Não aguentava mais tanto sol, tanto brilho, este mundo com febre. O azul estava sempre lá, infatigável, vigilante, sem nos dar o menor descanso. Um azul que já se tornava agressivo de tão invariável. Pois foi nas asas destas nuvens, que agora nos protegem, que o frio chegou.

Agora vou poder tomar o chocolate quente que faz muito me prometi. Tomar chocolate quente está muito longe de ser apenas tomar chocolate. Ele exige um ritual, é uma cerimônia quase religiosa. Primeiro, é preciso estar frio para que o oficiante possa ficar bem agasalhado. Em seguida é bom que se olhe para a superfície do chocolate escondida por baixo do vapor. O discreto marrom que então se descobre é único e nos lembra alguma coisa como uma cabana cercada de neve no alto de uma montanha suíça. É um marrom pelo menos espiritual de tão concentrado que ele é. E não se deve tomar o chocolate como quem se alimenta, como quem pratica um ato necessário. O prazer só entra no capítulo das inutilidades que fazem a vida valer a pena: a liberdade. Os goles devem ser curtos, com o líquido demorando-se na boca, antes de descer lentamente, aquecendo o corpo e acompanhando o ritmo das reflexões que ele sugere.

À noite, a gente se enrola num cobertor e vai pra frente da televisão ou fica lendo um livro, porque sair, numa noite fria, só em caso de necessidade, como ir ao teatro, jantar com amigos naquele restaurante, animar a festa junina das crianças. Se a noite for mais ou menos longa e as companhias valerem a pena, uma travessa de pipoca e uma garrafa de vinho ajudam a se ser feliz. Filme, claro, de preferência europeu. Bergman, Felini, Buñuel. O surrealismo, principalmente, vai bem com o frio. Ninguém vai querer comentar o filme até de madrugada, mas cada um, à sua maneira, terá viajado por territórios recém-descobertos.

Se você, meu caro leitor, faz parte da maioria, que prefere o calor para ter a oportunidade de vestir pouco, se você gosta de andar mais… digamos, natural, assim, quase de tanga, desculpe a opinião deste pobre representante da minoria, mas é preciso expressá-la. Você não pode se esquecer de que dispõe de uns trezentos e cinqüenta dias por ano como você gosta: sol, céu azul, calor de secar pimenteira. Deixe-nos nós, os da minoria, curtir estes cerca de quinze dias de frio. É nossa oportunidade de desfilar, vestidos com maior elegância. Tenha um pouco de paciência, leitor amigo, amanhã ou depois voltará a ser tudo como você tanto gosta.

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