Cultura

E vamos ao Oscar

Matheus Pichonelli comenta as chances dos indicados ao prêmio de Melhor Filme em 2013

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Nas últimas semanas, montei uma força-tarefa para conferir, antes da premiação, os nove indicados ao Oscar de Melhor Filme de 2013. Algumas conclusões: a cerimônia de domingo 24 será a mais americanizada dos últimos anos. Entre os indicados, cinco abordam fraturas históricas, recentes ou não, do passado ianque. Dois (Django e Lincoln) tratam da escravidão (leia mais ); outros dois tratam de incursões militares em território estrangeiro – o Irã em Argo e a o Paquistão em A Hora Mais Escura; Indomável Sonhadora é a reconstituição, não declarada, do abandono americano após o furacão Katrina na Louisiana. Dificilmente o premiado não sairá deste bolo.

Fora deste grupo, Os Miseráveis, musical dirigido por Tom Hooper, é o filme que causou mais frisson – o último musical premiado pela Academia foi Chicago, há exatos dez anos. A produção alterna bons e maus momentos, com destaque para o lado Susan Boyle de Anne Hathaway (que interpreta a prostituta Fantine) ao cantar o sofrido I Dreamed a Dream após vender os dentes para alimentar a filha. Faz jus, com sobras, a uma passagem clássica da literatura mundial. Mas o filme começa a sobrar a partir da segunda parte do livro de Victor Hugo. Na tela, a história cantada da jovem Cosette e do rebelde Marius ficou tão pueril quanto cansativa. O filme pode surpreender, mas não apostaria que o diretor britânico, vencedor do Oscar há dois anos com O Discurso do Rei, repetirá o feito tão cedo.

Sobram a Amour, cruel retrato da velhice pintado pelo austríaco Michael Haneke, e as Aventuras de Pi, filosófico infanto-juvenil do taiwanês Ang Lee, os papeis de azarões deste ano. Pi, aliás, foi a minha maior surpresa da lista. Primeiro por ser um filme diferente de tudo o que já havia visto de Ang Lee. Entre os indicados, é o mais rico em fotografia e efeitos especiais. Talvez por isso tenha levado um grande público infantil ao cinema – pelo menos em minha sala, crianças e pré-adolescentes e suas pipocas voadoras tomaram conta da sessão. As artimanhas do garoto Pi para sobreviver sem ser devorado por um tigre dentro de um barco à deriva após um naufrágio em alto mar podem ter agradado os jovens, mas a história não tinha nada de infantil.

Pelo contrário. Ao recriar uma situação-limite, baseada no premiado livro de Yann Martel – por sua vez, inspirado em Max e os Felinos, de Moacyr Scliar – Lee conseguiu reconstituir o processo de criação dos mitos que reordenam a ação humana numa sociedade caótica. Numa das cenas iniciais, o jovem tenta se aproximar do tigre no zoológico administrado por seus pais na Índia e é repreendido pelo pai: o tigre está faminto e vai te estraçalhar; ele é só um animal, e a humanidade que você vê nele é fruto apenas dos seus olhos. A simbologia fica clara conforme Pi, já um adulto adepto de várias religiões, usa a imagem do animal para recriar sua versão do naufrágio, do qual, por instinto, se tornou o único sobrevivente. É um filme, portanto, em camadas: funciona como uma epopeia adolescente mas também como uma narrativa complexa sobre a criação de signos, significados e significantes a expôr os dilemas (e instintos) humanos mais primitivos.

Amour é o mais sério e o mais intenso da lista. É a história de um casal de professores de música às portas da morte, mas uma morte sem anestesia, lenta e degradante. Impressionam a luta pela manutenção da dignidade em seu desfecho e a rejeição dos personagens à piedade do mundo fora do apartamento onde praticamente todo o filme é rodado (leia mais ). Consagrado em Cannes, deve ficar com outro Oscar, o de Melhor Filme Estrangeiro, embora tenha a concorrência do excelente No, do chileno Pablo Larrain (leia mais ).

Se a história recente se repetir, Lincoln, favorito com 12 indicações, não levará o prêmio. Nos últimos anos, os filmes mais aclamados antes da festa (como Avatar, em 2010, e Cisne Negro, em 2011), foram desbancados (por Guerra o Terror e O Discurso do Rei, respectivamente). O filme recebeu 12 indicações, entre elas as de Melhor Direção e Melhor Ator (que deve ficar com Daniel Day-Lewis). No filme, Spielberg tem como principal mérito reconstruir um personagem da envergadura de Abraham Lincoln sem abusar na tinta.

A aprovação da emenda pelo fim da escravidão, obsessão do presidente mais popular da história americana que resultou no fim da Guerra da Secessão, em 1865, é narrada em detalhes, inclusive os meios, lícitos e ilícitos, empregados pelo líder republicano para dobrar os adversários. (leia mais ) Muitos viram no longa um recado para o Barack Obama, que teria adiante desafios similares, como a democratização do acesso à saúde e a ampliação dos direitos de imigrantes e minorias. O prêmio, de toda forma, ficaria em casa: Lincoln, apesar da admiração universal, é um filme doméstico, feito para o público americano.

Argo, premiado pelo sindicato dos Atores (maioria dos eleitores de Hollywood), também chega à festa como favorito. Não será surpresa se vencer. O filme é, talvez, o que reúne mais elementos para levar a estatueta, a começar pela atuação de Ben Affleck, ator-diretor responsável por dar liga a uma trama impressionante: a elaboração, por um agente da CIA, de uma história verossímil para resgatar com segurança um grupo de americanos ilhados em Teerã após a revolução iraniana de 1979 (Leia mais ). Baseado em fatos reais, o filme retrata como Hollywood ajudou a agência americana a forjar um filme, com divulgação, escala de atores, máscaras, fantasias e leitura de roteiro, para convencer o Irã de que os diplomatas cercados em um país ensanguentado – e à caça de supostos agentes antirrevolução – eram parte de uma equipe de cinema em busca de locação. A cirurgia de risco é filmada com alta dose de tensão e outra, regular, de maniqueísmo – de um lado, iranianos selvagens sedentos por sangue, de outro, americanos inocentes, que meteram o nariz onde não deviam e agora pagavam o preço da insensatez.

O concorrente direto de Argo na lista é a A Hora Mais Escura,  relato mais cru de uma história que, até ontem, estampava os jornais (leia mais ). A captura de Osama Bin Laden é retratada de forma seca, para muitos cruel devido à exploração das imagens de tortura sobre os terroristas, espécie de mal necessário, assim entendido, para a heroína Maya (Jessica Chastain) chegar ao chefe da Al Qaeda. Cruel ou não, o filme de Kathryn Bigelow impressiona ao reconstituir a busca de uma agulha no palheiro, com sinais trocados da inteligência, erros de estratégia, exposição ao inimigo e anos de observação até chegar ao alvo, no casarão de um bairro de classe média no Paquistão. Detalhe: em 2010, Bigelow levou a estatueta com Guerra ao Terror, filme que expôs aos espectadores os traumas sofridos pelos soldados americanos nos combates no Iraque. Desta vez, Bigelow chega à cerimônia sob vaias por sua suposta tolerância à tortura – e é difícil imaginar que será consagrada novamente em tão pouco tempo.

O Lado Bom da Vida só tem um lado bom: quando Pat, o personagem interpretado por Bradley Cooper, deixa um hospital psiquiátrico e tenta retomar a vida a partir da casa dos pais. O estranhamento com a nova velha rotina e os esforços para convencer a mulher de que poderiam voltar a viver juntos remontam uma comédia romântica que entrega o que promete; mas, do meio para a frente, todos os clichês do cinema americano se repetem – o nada surpreendente final surpreendente, a competição de dança que une os amigos “vencedores”, os diálogos povoados de chavões sobre amores-agrada-bobocas (leia mais ). Era para ser um respiro, como o foram em outros anos Juno e Pequena Miss Sunshine, mas passou longe. Pior que isso: delegou a Robert de Niro, pai de Pat e um torcedor viciado em apostas, um dos papeis mais lamentáveis que ele já interpretou.

Indomável Sonhadora, por sua vez, dá a impressão de que o diretor estreante, Benh Zeitlin, não conseguiu transformar uma grande ideia num grande filme. O resumo: uma garota vê o mundo desmoronar à sua volta antes, durante e depois da passagem de uma tormenta que inunda e isola a sua comunidade. A estrutura, porém, é problemática: narrada pelos olhares da criança, interpretada por Quvenzhané Wallis, o filme parece andar em círculos não muito claros sobre passado, presente, realidade e delírio numa tentativa de abarcar os sentimentos contraditórios de admiração/compaixão/ódio da personagem em relação ao pai, um alcoólatra à beira da morte. A representação do mundo abalado pela estrutura soa poética e a linguagem parece original; na prática, é um filme confuso e sem vibração.

Vibração que sobra em Django, o grande filme da lista que tem o mérito de não se apegar aos limites da História com H maiúsculo. Pelo contrário, é um delírio de Quentin Tarantino sobre a escravidão americana. Ao lançar sobre o passado uma consciência atual, ele conseguiu o que queria: revisitar um período sombrio e fazer com que o espectador sentisse na pele a crueldade do escravismo (leia mais ). Para isso contou com uma das grandes dobradinhas do cinema recente: a dupla de caçadores de recompensas interpretada por Jamie Foxx e Christoph Waltz. Sobram no filme referências e homenagens a uma velha forma de fazer cinema, com direito à participação, numa das cenas, de Franco Nero, o Django original que marcou época nos anos 1960. É, da lista, o filme que mais diverte e arrepia – e deixa, de brinde, uma trilha sonora para o resto da vida. Não precisaria mais que isso para sair com a estatueta principal.

Em 2007, a Academia consagrou Martin Scorcese com os prêmios de melhor filme, melhor direção e melhor roteiro adaptado para os Os Infiltrados, no que foi interpretado à época como uma reparação a um histórico de injustiças ao diretor de Touro Indomável, Táxi Driver e O Aviador, que jamais havia conquistado uma estatueta. Em 2013, os jurados tinham a chance de dar a Tarantino uma homenagem similar – mas ele não foi sequer indicado para o Oscar de melhor Direção, indicativo da boa vontade da Academia com um de seus melhores filmes. De toda forma, se dependesse deste escriba, Django seria para Tarantino que Os Infiltrados foi para Scorcese. Não custa torcer.

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