Cultura
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
Nascido de imagens registradas 50 anos atrás, Elis & Tom – Só Tinha de Ser Com Você conta a história de um disco


“Você nunca terá uma segunda chance para causar uma primeira boa impressão”, escreveu o guru em gestão Tom Peters, causando, ele próprio, boa impressão. Mas Elis & Tom – Só Tinha de Ser Com Você, em cartaz desde a quinta-feira 21 nos cinemas, bota a frase de efeito abaixo.
O documentário dirigido por Roberto de Oliveira registra o encontro inicialmente tempestuoso daquela por muitos considerada a maior intérprete brasileira com um dos pais da bossa nova para a produção de um disco clássico: Elis & Tom, de 1974. O início das gravações, como nos mostra o filme, foi pau e pedra, embora o fim do caminho, como todos sabemos, tenha sido feliz.
A primeira reunião da dupla para tratar do projeto aconteceu no início de 1974. A cantora e seu marido, o pianista e diretor musical César Camargo Mariano, mal tinham desembarcado em Los Angeles quando foram para a casa de Tom Jobim, que vivia nos Estados Unidos.
Logo de cara, ele quis saber quem faria os arranjos das composições. Ao ouvir que Mariano assumiria a função, Jobim fez uma exclamação de desprezo, sem disfarçar seu desagrado, e sugeriu Claus Ogerman, o alemão que tinha trabalhado com ele e João Gilberto. “Foi uma facada no meu peito”, diz, décadas depois, Mariano, em entrevista para o filme.
O álbum foi um presente dado pela Philips para Elis Regina em homenagem aos dez anos da intérprete na gravadora
Elis também ficou enfurecida e, por pouco, não abandonou o projeto. Só não o fez por insistência de Roberto Menescal, bossa-novista de primeira hora e executivo da Philips, gravadora da cantora. A despeito das desavenças em torno do seu nome, Mariano foi mantido.
O álbum, que figura em várias listas de melhores discos da história, não só no Brasil, mas no mundo, foi um presente que a Philips resolveu dar para Elis para celebrar seus dez anos na companhia. Naquele momento, ela vivia um momento de certo ostracismo, especialmente junto aos formadores de opinião, por ter cantado nas Olimpíadas do Exército, de 1972.
Tom Jobim, por sua vez, estava num autoexílio em Los Angeles e carregava certa mágoa por nunca ter tido o reconhecimento devido no próprio País. “No Brasil, sucesso é ofensa pessoal”, dizia, em uma frase tornada célebre. O encontro seria, no entender da gravadora, uma forma de revitalizar a carreira de ambos.
Acontece que Tom Jobim e Elis Regina tinham suas diferenças. Quando a cantora participou das audições de Pobre Menina Rica, musical que trazia composições da dupla Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, o maestro teria dito, por exemplo, que ela era “uma gauchinha cheirando a churrasco”.
Questionado sobre esse xingamento num programa de entrevistas, Jobim negou: “Eu até gosto de churrasco”, respondeu, sem conter a ironia. Elis não parece, contudo, ter esquecido o insulto tão facilmente. Numa das passagens do documentário, Menescal lembra que, ao apresentá-la para o maestro, ela demonstrou certo desinteresse por aquela figura.
Uma das teorias levantadas pelo filme, já no terreno da psicanálise, é a de que Tom Jobim traria muito da carioquice e do jeito galhofeiro de Ronaldo Bôscoli, ideólogo da bossa nova e primeiro marido de Elis. Ela estaria num processo de “desboscolização” que a faria repelir qualquer coisa que lembrasse o ex-companheiro.
Um dos maiores trunfos do disco Elis & Tom – além, obviamente, do talento dos artistas que lhe dão nome – está justamente na escolha de César como arranjador. A combinação de instrumentos elétricos, como piano, baixo e guitarra, com acústicos – em certo momento, Mariano lembra o desdém de Jobim ao ver que ele chamou o piano de cauda de “piano de pau” – deu frescor às composições.
É, inclusive, recomendável a audição do álbum antes e depois de assistir ao documentário, que nos ajuda a perceber os detalhes de cada arranjo e entender o processo de nascimento desse triângulo amoroso/musical entre Elis, Tom e César que Roberto de Oliveira, então empresário de Elis, registrou em sua câmera de 35 milímetros.
Oliveira tinha 25 anos quando registrou os bastidores dessa gravação que se tornaria histórica. E levou quase cinco décadas para trazer esses registros ao mundo, acrescidos de testemunhas da história e de grandes nomes do jazz e da crítica musical. O filme traz testemunhos de gente como Menescal e André Midani, presidente da Philips (hoje Universal Music), o guitarrista Hélio Delmiro, o baterista Paulo Braga, o jornalista Nelson Motta, o saxofonista Wayne Shorter e o crítico de música do New York Times Jon Pareles.
Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você é, sabiamente, dividido em duas partes. A primeira tem o cuidado de apresentar os dois protagonistas para o público, enquanto a segunda trata do encontro em si. E esse encontro, como deixa claro o documentário, mudou radicalmente a carreira daqueles que dele fizeram parte.
“Disco perfeito”, como declara, em seu depoimento, o guitarrista Hélio Delmiro, Elis & Tom virou um filme que é – feito as águas de março – promessa de vida em nossos corações. •
Publicado na edição n° 1278 de CartaCapital, em 27 de setembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘É um caco de vidro, é a vida, é o sol’
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