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É preciso encontrar caminhos para reativar a dimensão ‘antissistêmica’ das forças de esquerda

Reside nessa reflexão o núcleo do desafio que se propõem a enfrentar os autores de ‘O Sistema e o Antissistema.­ Três Ensaios, Três Mundos no Mesmo Mundo’

É preciso encontrar caminhos para reativar a dimensão ‘antissistêmica’ das forças de esquerda
É preciso encontrar caminhos para reativar a dimensão ‘antissistêmica’ das forças de esquerda
Ensaios. O ativista indígena Ailton Krenak; o sociólogo Boaventura de Sousa Santos; e a escritora e militante Helena Silvestre vão na contracorrente
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Historicamente associado à esquerda, o qualificativo “antissistema” parece ter sido capturado pela extrema-direita. É ela quem, há algum tempo, vem se arrogando o direito de falar contra um “sistema” no âmbito do qual caberiam tanto a esquerda “progressista” quanto seus cúmplices “globalistas” do capital.

Embora incompleta e enganosa, tal percepção não deixa de expressar algo da atmosfera política e cultural vigente no Brasil e no mundo. Não é, afinal de contas, verdade que uma parcela significativa das esquerdas vem se contentando com a defesa de um sistema (ou de parte dele) que é, na realidade, o principal responsável pela ascensão da extrema-direita pretensamente antissistema?

Neste cenário, como reativar a dimensão antissistêmica das forças e dos movimentos dos oprimidos? Sem essa dimensão não permanecemos impotentes diante da instrumentalização antidemocrática de alguns dos sintomas da crise a que estamos submetidos?

Reside nessas perguntas o núcleo do desafio que se propõem a enfrentar os três autores de O Sistema e o Antissistema.­ Três Ensaios, Três Mundos no Mesmo Mundo. São eles o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (colunista de ­CartaCapital), defensor de uma nova ecologia dos saberes e responsável pelo ensaio que suscitou a interlocução; Helena Silvestre, jovem escritora afro-indígena brasileira e militante das lutas por moradia; e Ailton Krenak, ativista socioambiental, líder indígena e intelectual público.

De lugares e horizontes distintos, à luz de experiências específicas, os três falam, entretanto, sobre os mesmos mundos: o mundo de agora, a ser transformado, e o mundo do futuro, a ser construído em meio aos escombros do atual.

O SISTEMA E O ANTISSISTEMA: TRÊS ENSAIOS, TRÊS MUNDOS NUM MESMO MUNDO. Ailton Krenak, Helena Silvestre e Boaventura de Sousa Santos. Autêntica (80 págs., 36,90 reais)

Se Boaventura esboça uma reconstituição histórica e conceitual da “dialética entre o sistema e o antissistema”, até chegar aos dilemas contemporâneos, Helena Silvestre argumenta que, no limite, o pretenso caráter antissistema da extrema-direita atual nada mais é do que um “subproduto” do próprio sistema.

Para Helena, do ponto de vista da periferia – a do sistema e a das cidades globais –, norma e exceção aparecem entrelaçadas. “O normal é uma ruína, há muito tempo, que segue existindo também como miragem”, escreve. Assim, se é verdade que as “falsas performances antissistema” do protofascismo contemporâneo se voltam contra a democracia liberal, o mesmo não se pode dizer de sua real disposição para enfrentar o cerne do sistema: o capitalismo moderno-colonial.

Não por acaso, para além de uma defesa estratégica do lado “bom” do sistema – a democracia constitucional, por exemplo – contra os ataques autoritários da direita, Helena defende a necessidade de uma “aliança antissistema e anticapitalista”. Só essa aliança seria capaz de destruir aquilo que nos destrói, transformando o medo, a insegurança e mesmo o ódio em indignação e em estímulo para reaprendermos, como diz a autora, “sonhar com algo mais do que nós mesmos, sonhar com mundos possíveis que não sejam feitos à imagem e semelhança deste mundo capitalista”.

É também em defesa de “novas maneiras de se fazer política”, na contramão do “conserto civilizatório excludente” e da visão colonialista de mundo, que se coloca Ailton Krenak. Em seu ensaio, ele define a “reciprocidade” como a capacidade de “nos abrir(mos) para outros mundos, onde a diversidade e a pluralidade também estejam presentes”.

De lugares distintos, os autores pensam o mundo do futuro, a ser construído em meio aos escombros do atual

Tal como o lema dos zapatistas mexicanos, o intelectual indígena defende a construção de um mundo no qual caibam outros mundos. Krenak, assim como Helena, investe as suas expectativas antissistêmicas na herança daquilo que Walter Benjamin­ chama de “tradição dos oprimidos”.

Lidos em conjunto, os três ensaios podem ser vistos como peças de uma reflexão em movimento e, por isso mesmo, aberta. O caminho a ser trilhado depende do modo como se desenvolverão as alianças entre aqueles e aquelas que, de fato, podem falar e agir contra o atual­ “sistema”. No fundo, aos três interessa pensar os contornos de uma reativação da democracia desde baixo, ou seja, a partir da ótica dos oprimidos e de suas formas de perceber e atuar sobre o mundo.

A diferença está no modo como vislumbram esse processo. Da semiperiferia portuguesa, Boaventura vê no aparato democrático-constitucional um obstáculo à ascensão fascista. E esse aparato deve, portanto, ser utilizado como parte das estratégias de luta contra a ameaça autoritária. Por sua vez, Helena Silvestre e Ailton Krenak enfatizam, a partir das “margens” da periferia brasileira, a necessidade de uma confluência não apenas contra a extrema-direita, mas também contra o estilo exclusivamente moderno-ocidental de governo da vida.

Cada qual à sua maneira, os três autores se situam, claramente, na contracorrente. Eles enxergam o quão falaciosa e ideologicamente motivada é a ideia de um progresso irreversível da história. Mas têm também noção de que não há saída sem uma nova perspectiva de futuro coletivamente construída, algo que exigirá algum tipo de arranjo político contra a hegemonia estabelecida.

E, sem dúvida, este pequeno e notável livro faz parte do processo de enfrentamento dessa questão. Mesmo porque os autores sabem que, para adiar o fim do mundo, é preciso, antes de tudo, acelerar o fim deste mundo. É esse o verdadeiro horizonte antissistêmico que temos pela frente. •


*Fabio Mascaro Querido é professor de Sociologia da Unicamp.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1190 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JANEIRO DE 2022.

CRÉDITOS DA PÁGINA: ARQUIVO PESSOAL, GARAPA/PRODUÇÃO CULTURAL DO BRASIL E GUSTAVO LOPES PEREIRA

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