Cultura

É necessário que alguns tentem ser um novo Joyce. Mesmo em vão

Quem sabe apreciar Brahms e também sabe se divertir dançando um axé (digamos) é mais culto do que quem só ouve Brahms

O escritor Paulo Coelho. Galeria de eirikso/Flickr
Apoie Siga-nos no

Minha opinião sobre a treta literária de ontem à noite*.

Não posso entrar no mérito da obra do Paulo Coelho porque nunca li seus livros. Mas eu li o “Ulisses” de Joyce (na tradução de Houaiss, por isso escrevo com “i”) e o achei um livro espetacular, inclusive como entretenimento – todos os seus capítulos são no mínimo instigantes e alguns deles muitíssimo divertidos.

Tenho certa simpatia pela figura pública do Paulo Coelho por suas posições sociais e políticas geralmente generosas e progressistas, o que é bem mais do que se pode dizer hoje de muitas celebridades da contracultura do tempo da sua juventude. Mas para mim, quando veio a público dizer que “Ulisses” fez mal à literatura, foi grosseiro e mesquinho. Seria tão ridículo quanto Gilberto Gil (pelo qual tenho ainda mais simpatia como figura pública e posso dizer que aprecio enquanto cantor e músico popular) vir dizer que a “Sagração da Primavera” de Stravinsky ou o “Bolero” de Ravel fizeram mal à música.

Como autor e resenhista ocasional de gêneros que muitos críticos e professores consideram “subliteratura”, também sinto certa antipatia para com acadêmicos que acham que isso não deveria existir. Para mim, isso é tão absurdo quanto desejar que toda a música popular fosse banida e só existisse a erudita da melhor qualidade. Isso é desejar um mundo mais pobre, não mais rico e uma pretensão que não faz nenhum sentido. Para mim, quem sabe apreciar Brahms e também sabe se divertir dançando um axé (digamos) é mais culto do que quem só ouve Brahms.

Mas sinto ainda mais antipatia por leitores e escritores que acham que os clássicos, canônicos ou não, não passam de chatices impingidas por uma conspiração de acadêmicos. Esses, para mim, ainda precisam completar sua alfabetização – assim como quem não consegue apreciar música erudita é que (ainda, talvez) não consegue entender inteiramente o que é música e o que ela pode fazer.

Tenha Paulo Coelho lido ou não “Ulisses”, me pergunto seriamente se sua manifestação não foi o resultado de uma leitura apressada demais do primeiro parágrafo da introdução, por Felipe Pena, da recente coletânea “Geração Subzero”, lançada como contraponto à “Granta” que pretendeu divulgar novos autores de qualidade, mencionada na mesma entrevista do Paulo Coelho:

“Boa parte da literatura brasileira contemporânea presta um desserviço à leitura. Os autores não estão preocupados com os leitores, mas apenas com a satisfação de sua vaidade intelectual. Escrevem para si mesmos e para um ínfimo público letrado e pretensamente erudito, baseando as narrativas em jogos de linguagem que têm como único objetivo demonstrar uma suposta genialidade pessoal. Acreditam que são a reencarnação de James Joyce e fazem parte de uma estirpe iluminada. Por isso, consideram um desrespeito ao próprio currículo elaborar enredos ágeis, escritos com simplicidade e fluência. E depois reclamam que não são lidos. Não são lidos porque são chatos, herméticos e bestas”

Entendo que Felipe Pena não atacou James Joyce, mas autores que têm a pretensão de correr na mesma raia sem ter condições para isso. Simpatizo com a tese central dele de que é preciso que também haja uma literatura simples e fácil e que seu papel seja mais considerado e respeitado pelos críticos da cultura, mas não sei se tem razão nesse ponto. Acho necessário que alguns tentem ser um novo Joyce, mesmo em vão, se queremos ter mais grandes livros.

Quanto à treta em si, se me incomodou o elitismo de algumas manifestações da torcida de James Joyce, me incomodaram ainda mais as pontas de má-fé que vi em algumas defesas de Paulo Coelho, inclusive de tuiteiros que aprendi a respeitar em outros contextos. Por exemplo, chamar de “editorializada” e cobrar responsabilidade por uma nota da CartaCapital que só fez resumir a manifestação do Guardian e a resposta do escritor brasileiro. Ou fingir que Paulo Coelho estava falando da “morte do romance” quando essa discussão obviamente passa a anos-luz de seus interesses, se não de sua compreensão. Pois para o letrista de Raul Seixas, “Não há nada lá. Desmontado, Ulisses é uma idiotice”, nem mais nem menos.

Ou sugerir analogia com um hipotético crítico britânico que “humilhasse” Monteiro Lobato dizendo que “Harry Potter é muito melhor que o Sítio do Picapau Amarelo”. Não é à toa que depois recuou, dizendo que era “zuera”. Até a torcida do autor de “O Alquimista” deve ter ficado constrangida com a sugestão de que Monteiro Lobato estivesse para J. K. Rowling como Paulo Coelho para James Joyce –ou de que estes dois últimos, em qualquer sentido que fosse, sequer participassem do mesmo “campeonato”.

 

*O texto foi publicado originalmente no Twishort de Antonio Luiz M. C. Costa, jornalista de CartaCapital, em meio à repercussão das declarações de Paulo Coelho segundo as quais o clássico “Ulisses”, de James Joyce, fazia mal à literatura e poderia ser resumida em um tuíte

Minha opinião sobre a treta literária de ontem à noite*.

Não posso entrar no mérito da obra do Paulo Coelho porque nunca li seus livros. Mas eu li o “Ulisses” de Joyce (na tradução de Houaiss, por isso escrevo com “i”) e o achei um livro espetacular, inclusive como entretenimento – todos os seus capítulos são no mínimo instigantes e alguns deles muitíssimo divertidos.

Tenho certa simpatia pela figura pública do Paulo Coelho por suas posições sociais e políticas geralmente generosas e progressistas, o que é bem mais do que se pode dizer hoje de muitas celebridades da contracultura do tempo da sua juventude. Mas para mim, quando veio a público dizer que “Ulisses” fez mal à literatura, foi grosseiro e mesquinho. Seria tão ridículo quanto Gilberto Gil (pelo qual tenho ainda mais simpatia como figura pública e posso dizer que aprecio enquanto cantor e músico popular) vir dizer que a “Sagração da Primavera” de Stravinsky ou o “Bolero” de Ravel fizeram mal à música.

Como autor e resenhista ocasional de gêneros que muitos críticos e professores consideram “subliteratura”, também sinto certa antipatia para com acadêmicos que acham que isso não deveria existir. Para mim, isso é tão absurdo quanto desejar que toda a música popular fosse banida e só existisse a erudita da melhor qualidade. Isso é desejar um mundo mais pobre, não mais rico e uma pretensão que não faz nenhum sentido. Para mim, quem sabe apreciar Brahms e também sabe se divertir dançando um axé (digamos) é mais culto do que quem só ouve Brahms.

Mas sinto ainda mais antipatia por leitores e escritores que acham que os clássicos, canônicos ou não, não passam de chatices impingidas por uma conspiração de acadêmicos. Esses, para mim, ainda precisam completar sua alfabetização – assim como quem não consegue apreciar música erudita é que (ainda, talvez) não consegue entender inteiramente o que é música e o que ela pode fazer.

Tenha Paulo Coelho lido ou não “Ulisses”, me pergunto seriamente se sua manifestação não foi o resultado de uma leitura apressada demais do primeiro parágrafo da introdução, por Felipe Pena, da recente coletânea “Geração Subzero”, lançada como contraponto à “Granta” que pretendeu divulgar novos autores de qualidade, mencionada na mesma entrevista do Paulo Coelho:

“Boa parte da literatura brasileira contemporânea presta um desserviço à leitura. Os autores não estão preocupados com os leitores, mas apenas com a satisfação de sua vaidade intelectual. Escrevem para si mesmos e para um ínfimo público letrado e pretensamente erudito, baseando as narrativas em jogos de linguagem que têm como único objetivo demonstrar uma suposta genialidade pessoal. Acreditam que são a reencarnação de James Joyce e fazem parte de uma estirpe iluminada. Por isso, consideram um desrespeito ao próprio currículo elaborar enredos ágeis, escritos com simplicidade e fluência. E depois reclamam que não são lidos. Não são lidos porque são chatos, herméticos e bestas”

Entendo que Felipe Pena não atacou James Joyce, mas autores que têm a pretensão de correr na mesma raia sem ter condições para isso. Simpatizo com a tese central dele de que é preciso que também haja uma literatura simples e fácil e que seu papel seja mais considerado e respeitado pelos críticos da cultura, mas não sei se tem razão nesse ponto. Acho necessário que alguns tentem ser um novo Joyce, mesmo em vão, se queremos ter mais grandes livros.

Quanto à treta em si, se me incomodou o elitismo de algumas manifestações da torcida de James Joyce, me incomodaram ainda mais as pontas de má-fé que vi em algumas defesas de Paulo Coelho, inclusive de tuiteiros que aprendi a respeitar em outros contextos. Por exemplo, chamar de “editorializada” e cobrar responsabilidade por uma nota da CartaCapital que só fez resumir a manifestação do Guardian e a resposta do escritor brasileiro. Ou fingir que Paulo Coelho estava falando da “morte do romance” quando essa discussão obviamente passa a anos-luz de seus interesses, se não de sua compreensão. Pois para o letrista de Raul Seixas, “Não há nada lá. Desmontado, Ulisses é uma idiotice”, nem mais nem menos.

Ou sugerir analogia com um hipotético crítico britânico que “humilhasse” Monteiro Lobato dizendo que “Harry Potter é muito melhor que o Sítio do Picapau Amarelo”. Não é à toa que depois recuou, dizendo que era “zuera”. Até a torcida do autor de “O Alquimista” deve ter ficado constrangida com a sugestão de que Monteiro Lobato estivesse para J. K. Rowling como Paulo Coelho para James Joyce –ou de que estes dois últimos, em qualquer sentido que fosse, sequer participassem do mesmo “campeonato”.

 

*O texto foi publicado originalmente no Twishort de Antonio Luiz M. C. Costa, jornalista de CartaCapital, em meio à repercussão das declarações de Paulo Coelho segundo as quais o clássico “Ulisses”, de James Joyce, fazia mal à literatura e poderia ser resumida em um tuíte

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo