Cultura

É doce morrer no mar

Será que um dia a profecia daquela cigana vai se concretizar?

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Nunca tive medo de avião. Nem mesmo quando pegava aqueles teco-tecos mequetrefes com destino ao interior de Minas, acompanhando meu pai nas inaugurações dos postos meteorológicos. 

Mas uma vez eu tive. Estava com a mala pronta pra voar pra Coreia do Sul, convidado a visitar uma fábrica da Samsung, perto de Seul. Estava animado, era a primeira vez que ia tão longe e para um país tão diferente e exótico, de gente que come cachorro. 

Poucos dias antes da partida, andando pelo centro de São Paulo, Praça da República, uma cigana insistiu em ler a minha mão. Não gosto disso, mas quando vi, ela já estava com a minha mão aberta e seu indicador acariciando a linha da vida. 

Sempre tive mais medo de ciganas do que de aviões. Quando eu era criança, elas viviam perambulando pelas ruas do bairro do Carmo, vendendo ovos de pata. Minha mãe dizia que eram roubados aqueles ovos. Não sei de onde ela tirou essa história, mas a única vez que comprou uma dúzia deles, sete estavam chocos. 

Passei a ter medo de ciganas quando, um dia, uma disse para minha tia que ela iria morrer assassinada, assim, na lata. Passei muitos e muitos anos temeroso que aquela tia tão querida, sei lá que dia, levaria uns tiros na cabeça ou, quem sabe, umas facadas no coração. Isso nunca aconteceu. Minha tia morreu, mas de velha. 

Em Paris, uma cigana, vinda da Iugoslávia, sentou-se ao meu lado na estação Denfert Rochereau do metrô e foi até a estação Quai de La Gare tentando me convencer a ler o meu futuro. Não quis, mas quando chegou em Quai de la Gare, ela disse apenas uma coisa antes de pular do vagão com um filho no colo: “Você vai ter quatro filhos!” Não esqueci disso nunca mais. Eu ainda não tinha nenhum filho e, hoje, tenho quatro. 

O que me assustou na Praça da República, às vésperas de voar pra Coreia do Sul, foi que, depois de negar a dar-lhe um trocado, a cigana disse que a minha morte seria trágica. Eu morreria no mar. Quando cheguei em casa, peguei o mapa mundi e fui ver direitinho o caminho até chegar a Seul. Quando vi tanto mar que iria sobrevoar, não pensei duas vezes. Cheguei na redação do Jornal do SBT e despachei o subeditor pra Coreia do Sul. 

Claro que não pensei que o avião cairia com o Ricardo Taira, amigo do peito. Ele cairia só se eu estivesse dentro, pensei. E lá se foi o meu amigo feliz da vida pra Coreia saborear um beoseot jeongol, se encantar com o mercado de Dongdaemun e conhecer a fábrica da Samsung.

Enquanto isso, eu, mineiro desconfiado, ficava por aqui, desfazendo a mala e indo mais cedo pra TV, já que o subeditor não estava lá pra me dar uma mão e a gente colocar o jornal do Eliakim e da Leila no ar.

Hoje, continuo viajando de avião e teve uma época que viajava sem parar. Durante mais de dez anos, não saía da ponte-aérea. No último ano que trabalhei no Fantástico, aquele show da vida, guardei todos os tickets de embarque numa caixinha de madeira que comprei lá na Além da Lenda.

No final do ano, fui contando um por um: Cento e cinquenta e dois tickets. Sim, eu entrei no avião cento e cinquenta e duas vezes naquele ano.

Confesso que, até hoje, toda vez que estou sobrevoando o mar – que amo tanto – eu me lembro daquela cigana na Praça da República. Mas o que me acalma, olhando lá embaixo através daquela janelinha oval, é cantar baixinho uma velha canção de Dorival Caymmi que diz assim:

É doce morrer no mar/Nas ondas verdes do mar/É doce morrer no mar/Nas ondas verdes do mar/A noite que ele não veio foi/Foi de tristeza pra mim/Saveiro voltou sozinho/Triste noite foi pra mim/Como é doce morrer no mar.

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